Blog “TESTEMUNHAS DE JEOVÁ”, de autoria de Álaze Gabriel.
Autoria:
1 - Letícia
Erig Osório de Azambuja - Mestre em Bioética, dentista e advogada,
Brasília, DF;
2 -
Volnei Garrafa - Pós-doutor em Bioética - Professor titular da
Universidade de Brasília - UnB, Brasília, DF
RESUMO
OBJETIVO:
Estudar o grau de conhecimento e aceitação de hemocomponentes e hemoderivados,
frescos e armazenados, pelas testemunhas de Jeová e propor ferramentas
bioéticas para o enfrentamento de eventuais conflitos éticos e morais nas
relações com médicos e dentistas.
MÉTODOS:
Aplicação de questionários a 150 testemunhas de Jeová que frequentam Salões do
Reino no Distrito Federal, Brasil. Os questionários buscaram respostas a
aspectos sociodemográficos relacionados à possível aceitação de hemocomponentes
e hemoderivados pelos pesquisados, bem como a atitude dos profissionais de
saúde ante à opção religiosa dos pacientes.
RESULTADOS:
Dos pesquisados: 74% acreditam que usar sangue provoca mais malefícios do que
benefícios à saúde (fundamentação essencialmente bíblica); 96% não aceitam usar
hemocomponentes, mas 76% aceitam usar hemoderivados em situações específicas,
demonstrando haver entendimentos particulares sobre o tema; 80% se sentem
moralmente ofendidos com o uso de sangue armazenado e apenas 45% com sangue
fresco, confirmando a interpretação religiosa de que produtos frescos são em
geral mais aceitos; segundo 83% dos pesquisados, seus dentistas não perguntaram
a religião dos pacientes contra 71% dos médicos, demonstrando pouca preocupação
dos profissionais neste aspecto.
CONCLUSÃO:
As testemunhas de Jeová são vistas por seus "estranhos morais" (aqui,
médicos e dentistas) como religiosos que simplesmente "não aceitam
sangue". Todavia, diversos tratamentos sanguíneos são hoje aceitos, o que
não impede, por livre convicção, a recusa no recebimento de qualquer deles. As
interpretações particulares costumam ampliar o rol de proibições e de conflitos
morais, já que médicos e dentistas, além de não considerar estas
particularidades, também não perguntam a religião na anamnese.
Unitermos:
Testemunhas de Jeová. Medicamentos hemoderivados. Substitutos sanguíneos. Bioética.
Autonomia pessoal. Autonomia profissional.
SUMMARY
OBJECTIVE: To study extent of knowledge and
acceptance of hemocomponents and hemoderivatives, fresh and stored, by
Jehovah's Witnesses and also propose bioethical tools for any ethical and moral
conflicts identified in their relationship with physicians and dentists.
METHODS: A questionnaire was used to interview 150
Jehovah's Witnesses who attend "Salões do Reino" in the Distrito
Federal, Brazil. The questionnaire was directed towards information on
socio-demographic aspects related to the use (or not ) of hemocomponents and
hemoderivatives by those interviewed and also approach of healthcare
professionals with patients of this belief.
RESULTS: 74% believe that the use of blood causes more
harm than benefits to health - refusal is essentially based on the Bible 96% do
not support hemocomponents, but 76% support hemoderivatives in specific
situations, showing that personal understandings do exist; 80% feel morally
offended with use of stored blood and only 45% with fresh blood, confirming the
religious interpretation that fresh products are in general more accepted;
according to 83% of the interviewees dentists do not ask about patients' religion,
whereas 71% of physicians do, showing little professional concern about this
aspect.
CONCLUSION: Jehovah's Witnesses are seen by
their "moral outsiders" (here physicians and dentists) as the
religious group that simply "does not use blood". Although, several
blood treatments are nowadays permitted,. it does not deprive them from a free
conviction to refuse blood treatments. Their particular understandings
frequently extend the list of blood prohibitions and, consequently, the number
of moral conflicts, when considering that physicians and dentists usually do
not ask about a patient's religion.
Key words: Jehovah's Witnesses. Blood
component transfusion. Blood substitutes. Bioethics. Personal autonomy. Professional
autonomy.
INTRODUÇÃO
As
transformações éticas, morais e legais associadas ao progresso
técnico-científico dos últimos anos trouxeram situações novas às práticas em
saúde, modificando o relacionamento dos profissionais com seus pacientes de
modo a torná-lo menos orientado aos deveres e obrigações morais (deontologia) e
mais voltado ao respeito à autonomia e ao pluralismo moral (bioética)1,2,3,4.
A
relação profissional-paciente é naturalmente assimétrica e vertical. Tal
característica se torna mais acentuada quando o profissional define
unilateralmente as decisões terapêuticas a serem tomadas. Nestes casos o
profissional age com um ideal de beneficência exagerado, o que faz com que
acabe assumindo, na prática, uma posição paternalista, decidindo pelo outro. O
limite da beneficência é a autonomia5.
Novas
técnicas que podem trazer benefícios do ponto de vista terapêutico, por vezes,
esbarram em questões de cunho moral, ético e/ou religioso. Dentre as novas
situações ética e moralmente conflituosas em saúde está a aplicação das novas
terapias com hemocomponentes e hemoderivados em pacientes testemunhas de Jeová.
Hemocomponentes
e hemoderivados têm papel importante dentro dos tratamentos à base de sangue,
hoje, com ampla utilização nos campos médico e odontológico. Estes biomateriais
possibilitam a criação e ampliação de diversas técnicas, além de proporcionar
mais conforto, acelerar e melhorar a cicatrização de leitos cirúrgicos6,7
.
O
processo de regeneração (formação de tecido funcional e morfologicamente
restaurado, igual em propriedades e estrutura ao tecido perdido) costuma ser
naturalmente substituído pelo reparo, com densidade e qualidades nitidamente
inferiores8. Para que a regeneração tecidual seja obtida na
cicatrização, alguns fatores devem estar presentes: a qualidade do tecido doado,
a vascularização da área receptora, a imobilização do enxerto e a eficiência
dos mecanismos de reparo. Dentre eles, apenas o último independe exclusivamente
da técnica cirúrgica executada, podendo ser melhorado com o uso de biomateriais
sanguíneos6,9.
Dentre
os tratamentos sanguíneos que podem auxiliar neste e em outros processos
fisiológicos e que também são particularmente relevantes à questão do uso em
pacientes testemunhas de Jeová, pode-se mencionar: sangue total (transfusão),
hemocomponentes (plasma, hemácias, plaquetas, plasma rico em plaquetas e gel de
plaquetas), hemoderivados (cola de fibrina, soros, vacinas, expansores de
plasmáticos e fatores de coagulação) e outros (cell saver, hemodiálise,
circulação extracorpórea, carreadores de oxigênio livre de células e
hemodiluição [iso]normovolêmica aguda).
O
Brasil é um país laico e com o pluralismo religioso constitucionalmente
protegido10. Além disso, segundo dados de 2009, é o segundo país do
mundo em número absoluto de testemunhas de Jeová com mais de 700 mil seguidores11.
Mesmo com tais números e garantias, continuam a ocorrer conflitos nos
tratamentos médicos e odontológicos com seguidores da religião. Nem mesmo o
fato de haver previsão de crime de constrangimento ilegal (artigo 146, § 3º, I
do Código Penal Brasileiro) para médico ou dentista que obrigue paciente
testemunha de Jeová, consciente e civilmente capaz, a receber sangue, impede o
desrespeito à autonomia dos mesmos10,12.
O
responsável por estabelecer proibição à transfusão de sangue, a vacinas e a
transplantes de órgãos entre as testemunhas de Jeová foi Nathan Homer Knorr.
Segundo a revista The Watchtower de 1º de dezembro de 1944, a proibição
de comer sangue que, consta na Bíblia, deveria ser estendida aos tratamentos
médicos13. Em 1945, esta proibição foi ampliada, incluindo também
sangue de animais, transplantes de órgãos e tecidos e vacinas13,14.
Tais
fundamentos estariam prescritos em diversas passagens bíblicas, que, embora não
estejam escritas expressamente em termos técnicos, são interpretadas como sendo
proibitivas ao uso de sangue na área biomédica3,4. Eis algumas
passagens que se referem à abstinência de sangue, à busca da boa saúde e ao
sangue como a alma dos seres: Gênesis 9: 3, 4, 5 e 6; Levítico 17: 10, 11, 12,
13 e 14; Atos dos Apóstolos 15: 20, 28 e 29; e Deuteronômio 12: 23, 24 e 25; 1
Samuel 14: 32, 33 e 3415,16,17.
Todavia,
a interpretação dos tratamentos sanguíneos segundo a religião mudou ao longo do
tempo, pois novas técnicas foram criadas, assim como surgiram novas
interpretações. Por outro lado, entendimentos particulares, feitas por cada
testemunha, não são restringidas, o que resulta em ampliação do rol de
proibições13,16.
De
modo geral, hoje, diversos tratamentos que envolvem sangue são tolerados pelas
testemunhas de Jeová. Todavia, muitos médicos e dentistas ou desconhecem este
fato ou simplesmente não sabem que seu paciente é uma testemunha de Jeová já
que não costumam incluir na anamnese tal questionamento, o que cria a priori
um problema concreto com relação ao respeito à autonomia destes pacientes13,16,17.
Como
regra geral, o uso de produtos sanguíneos xenogênicos não é aceito e o uso de
alogênicos é feito com ressalvas. No que tange ao sangue total e aos
hemocomponentes (leucócitos, eritrócitos, plasma ou plaquetas) armazenados e/ou
heterólogos (de outro indivíduo), não há aceitação. Já em relação aos
hemoderivados (diminutas frações) não há qualquer proibição, pois não são
considerados sangue (alma) pela doutrina religiosa. Outras terapias com
material autólogo e fresco (como a circulação extracorpórea, o cell saver,
a hemodiálise e o plasma rico em plaquetas) são geralmente aceitas16.
Para mais detalhes, vide Quadro
1.
Com
diferentes interpretações e a falta de conhecimento ou interesse pelos
profissionais de saúde, as testemunhas de Jeová, aos olhos de seus
"estranhos morais", segundo Engelhardt (médicos e dentistas
não-Testemunhas, no caso), são simplesmente religiosos que "não aceitam
sangue", fato que representa campo propício ao surgimento de conflitos18,19.
A
presente pesquisa teve como objetivo geral estudar a posição das testemunhas de
Jeová do Distrito Federal, Brasil, ante ao uso terapêutico de hemoderivados e
hemocomponentes, frescos e armazenados. Os objetivos específicos foram: estudar
o grau de conhecimento e de aceitação das referidas terapias pelas testemunhas
de Jeová; analisar aspectos socioculturais dos pesquisados; identificar, em
relação aos profissionais de saúde, se há preocupação com a religiosidade dos
pacientes na anamnese; e propor ferramentas bioéticas para a solução de
eventuais conflitos encontrados.
MÉTODOS
Trata-se
de estudo descritivo qualitativo de corte transversal. A pesquisa foi realizada
com amostra aleatória e de conveniência de 150 testemunhas de Jeová que
praticam a religião no Distrito Federal, Brasil. Não houve qualquer restrição
pessoal quanto ao pesquisado, desde que os menores fossem
assistidos/representados por seus responsáveis. Os critérios de exclusão
incluíram analfabetos e aqueles que não desejaram participar da pesquisa.
A
Comissão de Ligação com Hospitais para testemunhas de Jeová (Colih) autorizou a
pesquisa, contatou os sujeitos, prestou informações e auxiliou na distribuição
dos questionários. Tal participação foi essencial, tendo em vista os requisitos
da Resolução nº 196/1996 do Ministério da Saúde e a dificuldade de se contatar
tais sujeitos de maneira isolada.
Os
questionários foram distribuídos em Salões do Reino (locais onde as testemunhas
de Jeová se reúnem e professam sua fé) que abrangem os seguintes bairros do
Distrito Federal: Cruzeiro Novo, Cruzeiro Velho, Setor Octogonal, Setor Sudoeste,
Setor de Mansões Park Way, Águas Claras e Taguatinga.
O
questionário foi composto de perguntas fechadas, dividido em duas partes: parte
I (dados gerais) com três questões sobre a idade, sexo e grau de escolaridade
do pesquisado; e parte II (questionário específico) com seis perguntas que
atendiam aos objetivos do estudo. Juntamente a uma folha com explicações sobre
a pesquisa, foi entregue uma cópia do questionário e duas vias do Termo de
Consentimento Informado (TCI). Todos os 150 questionários distribuídos foram
devolvidos devidamente preenchidos.
A
metodologia do estudo respeitou as normas de ética em pesquisa com seres
humanos estabelecidas na Resolução nº 196/1996 do Ministério da Saúde, tendo
sido previamente aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de
Ciências da Saúde da Universidade de Brasília, sob o registro 070/2009. Os
dados foram computados pelo método de porcentual simples, com desprezo de casas
decimais, com o programa Excel® da Microsoft para a tabulação, o
cruzamento dos dados e a confecção dos gráficos.
RESULTADOS
A
primeira pergunta da parte I do questionário (dados gerais), sobre a idade dos
sujeitos de pesquisa, apresentou os seguintes resultados: a) 28% até 30 anos
(42 pesquisados); b) 25% de 31 a 40 anos (38 pesquisados); c) 26% de 41 a 50
anos (39 pesquisados); d) 14% de 51 a 60 anos (21 pesquisados); e) 7% mais de
60 anos (10 pesquisados).
A
segunda pergunta, sobre o sexo dos sujeitos de pesquisa, apresentou os
seguintes resultados: a) 39% masculino (59 pesquisados); b) 60% feminino (90
pesquisados); c) >1% sem resposta (1 pesquisado).
A
terceira pergunta da parte I, sobre o nível de escolaridade, apresentou os
seguintes resultados: a) 5% primário incompleto (7 pesquisados); b) 2% primário
completo (4 pesquisados); c) 11% secundário incompleto (17 pesquisados); d) 33%
secundário completo (49 pesquisados); e) 13% superior incompleto (20
pesquisados); f) 23% superior completo (34 pesquisados); g) 13% pós-graduação
(19 pesquisados).
A
primeira pergunta da parte II do questionário (questionário específico), - O
seu médico já lhe perguntou qual é a sua religião?, apresentou os seguintes
resultados: a) 28% já perguntou (42 pesquisados); b) 71% nunca perguntou (107
pesquisados); c) >1% sem resposta (1 pesquisado).
A
segunda pergunta da parte II, - O seu dentista já lhe perguntou qual é a sua
religião?, apresentou os seguintes resultados: a) 17% já perguntou (25
pesquisados); b) 83% nunca perguntou (125 pesquisados).
A
terceira pergunta, Você acha que as terapias médicas e/ou odontológicas que
usam o sangue com seus quatro hemocomponentes (glóbulos vermelhos +
glóbulos brancos + plaquetas + plasma) para diminuir o risco de morte ou
melhorar a cicatrização de cirurgias trazem mais benefícios ou mais malefícios
à saúde física das pessoas?, apresentou os seguintes resultados: a) >1%
trazem mais benefícios (1 pesquisado); b) 74% trazem mais malefícios (110
pesquisados); c) 13% são terapias como qualquer outra, com malefícios e
benefícios (20 pesquisados); d) 9% não conheço estas terapias (13 pesquisados);
e) 4% sem resposta (6 pesquisados). Algumas pessoas, mesmo não havendo comando
para tanto, ainda comentaram a questão: a) nenhuma dessas respostas
considerando que deve ser analisado a fundo cada procedimento (1 pessoa);
b) a visão das testemunhas independe de resultados (2 pessoas); c) rejeito
tal terapia (1 pessoa); d) preciso ser informado de cada procedimento
(1 pessoa).
A
quarta pergunta da parte II do questionário, Você aceitaria alguma terapia
médica e/ou odontológica que utilizasse de forma separada apenas um dos
hemocomponentes (glóbulos vermelhos ou glóbulos brancos ou plaquetas ou
plasma)", apresentou os seguintes resultados: a) >1% sempre
autorizaria (1 pesquisado); b) 2% somente se fosse realmente preciso para
melhorar a recuperação e/ou resultados (3 pesquisados); c) 1% em caso de risco
de morte apenas (2 pesquisados); d) 96% nunca usaria (144 pesquisados).
A
quinta pergunta, Os hemocomponentes descritos acima ainda podem ser
divididos em pedaços menores, chamados de hemoderivados (exemplo: albumina,
fibrinogênio, imunoglobulinas e fatores de coagulação). Você aceitaria alguma
terapia médica e/ou odontológica que utilizasse apenas estes "hemoderivados"
em seu corpo?, apresentou os seguintes resultados: a) 8% sempre autorizaria
(12 pesquisados); b) 51% somente se fosse realmente preciso para melhorar a
recuperação e/ou resultados (77 pesquisados); c) 17% apenas em caso de risco de
morte (25 pesquisados); d) 23% nunca usaria (35 pesquisados); e) >1% sem
resposta (1 pesquisado).
A
sexta pergunta, Você se sentiria ofendido moralmente se o médico ou dentista
que está lhe tratando com a sua devida autorização fizesse alguma terapia com 'hemocomponentes
e/ou hemoderivados de sangue NÃO-FRESCO' sem lhe informar este fato?,
apresentou os seguintes resultados: a) 1% eu não ficaria ofendido, pois aceito
estes tratamentos (2 pesquisados); b) 8% eu ficaria ofendido somente se fosse
com hemocomponentes não-frescos (12 pesquisados); c) >1% eu ficaria ofendido
somente se fosse com hemoderivados não-frescos (1 pesquisado); d) 80% qualquer
terapia com sangue não-fresco me deixaria ofendido (120 pesquisados); e) 10%
sem resposta (15 pesquisados). Algumas pessoas, mesmo não havendo comando para
tanto, ainda comentaram a questão: a) eu ficaria ofendido apenas por não ser
informado (1 pessoa); b) ficaria ofendido com qualquer terapia (1
pessoa); e c) apesar da autorização, preciso ser informado de cada
procedimento (4 pessoas).
A
sétima pergunta da parte II do questionário, Você se sentiria ofendido
moralmente se o médico ou dentista que está lhe tratando com a sua devida
autorização fizesse alguma terapia com o uso intra-operatório de material
FRESCO de seu próprio sangue (exemplo: hemodiluição normovolêmica aguda,
circulação extracorpórea, recuperação intraoperatória de células, hemodiálise,
uso de plasma rico em plaquetas) sem lhe informar este fato?",
apresentou os seguintes resultados: a) 3% eu não ficaria ofendido, pois aceito
qualquer terapia com sangue fresco (4 pesquisados); b) 8% eu ficaria ofendido
somente se fosse com hemocomponentes frescos (12 pesquisados); c) 0% eu ficaria
ofendido somente se fosse com hemoderivados frescos (0 pesquisados); d) 45%
qualquer terapia com sangue fresco me deixaria ofendido (68 pesquisados); e)
44% sem resposta (66 pesquisados).
Mesmo
não havendo comando para tanto, 28 pesquisados justificaram assim esta última
questão: a) especialmente porque não me informou (4 pessoas); b) O
médico ou profissional de saúde deve me esclarecer antecipadamente o que
pretende usar (terapia, procedimento, etc.). No caso de emergências e/ou
inconsciência, deixo formalizado num documento com firma reconhecida do que
aceito ou rejeito (1 pessoa); c) ficaria ofendido com qualquer terapia (1
pessoa); d) apenas se não fosse informado do procedimento, pois aceito
algumas terapias que utilizariam meu próprio sangue (1 pessoa); e) preciso
ser informado de cada procedimento (14 pessoas); e f) a ética exige que
fique sabendo antes de cada procedimento" (7 pessoas).
O
cruzamento dos aspectos sociodemográficos com os demais dados específicos não
apresentou qualquer relevância estatística.
DISCUSSÃO
Uma
anamnese bem executada pode evitar complicações clínicas, éticas e jurídicas,
além de possibilitar o diálogo entre sujeitos de relações discrepantes e
reforçar a autonomia dos pacientes. Ela é o primeiro contato do profissional
com seu paciente, de onde se extraem informações necessárias a um atendimento
mais integral e não apenas clínico. Neste sentido, pode proporcionar melhores
informações com relação a um possível uso de componentes sanguíneos, pois
auxilia no correto planejamento terapêutico, o que, para as testemunhas de
Jeová, é de especial relevância20.
Todavia,
apesar do exposto, na amostra que sustenta o presente estudo apenas 28% dos
médicos e somente 17% dos dentistas perguntaram qual a religião do paciente no
atendimento clínico. Tal conduta não se mostra condizente com a legislação do
Brasil, país onde a pesquisa foi desenvolvida e que é constitucionalmente laico
e religiosamente pluralista10.
Tudo
isso mostra que os avanços éticos no campo profissional biomédico não têm
acompanhado o desenvolvimento tecnocientífico na mesma proporção, visto que a
preocupação com o estado clínico e em oferecer os melhores e mais modernos
tratamentos aos pacientes ainda constitui o foco unilateral do atendimento,
independentemente das opções morais pessoais destes pacientes1,5.
Alguns
pesquisados chegaram a mencionar que seria "falta de ética" do
profissional não explicar cada procedimento. Conflitos éticos acontecem mais
comumente entre aquelas pessoas que Engelhardt denomina de "estranhos
morais"18, indivíduos que não compartilham uma mesma moralidade
e que necessitam dialogar para chegar a possíveis acordos21. E
exatamente isso que ocorre entre pacientes testemunhas de Jeová e profissionais
de saúde não-testemunhas, já que, aos olhos de seus "estranhos
morais", tais pacientes são apenas religiosos que "não aceitam
sangue" - o que não condiz com a realidade18.
A
maioria dos pesquisados (74%) acredita que as terapias sanguíneas provocam mais
malefícios do que benefícios à saúde. A literatura científica realmente refere
inúmeras reações indesejadas ao uso de sangue22. A doutrina das
testemunhas e a própria Bíblia se expressam no mesmo sentido, já que a busca da
boa saúde estaria relacionada à abstenção do uso de sangue (Atos dos Apóstolos
15: 29)15. Assim, usar sangue para um seguidor da doutrina seria não
apenas ferir sua crença e sua interpretação bíblica (principal fundamento), mas
seu direito de escolha a um tratamento até mesmo mais saudável sob seu próprio
ponto de vista23.
As
testemunhas de Jeová aceitam os tratamentos médicos e odontológicos em geral,
inclusive alguns que utilizam sangue. Entretanto, a regra é rejeitar seu uso.
Interpretações pessoais são permitidas pela religião e ocorrem principalmente
no sentido de rejeitar mais do que é permitido, pois há testemunhas que
consideram mesmo os hemoderivados como sangue (alma), além de não aceitar
"tudo" que se relacione a sangue de alguma forma3,16.
Os
hemocomponentes são os menos aceitos (menos de 4% os usaria), já que este
biomaterial é rejeitado pela doutrina religiosa como se fosse sangue total, ou
seja, só poderia ser aceito se homólogo e fresco. Quanto aos hemoderivados, o
dogma das testemunhas de Jeová não os reconhece como sangue, pois constituem
apenas diminutas frações deste tecido. Todavia, apesar de haver permissão
doutrinária para seu uso, somente 8% dos pesquisados os acatam sem qualquer
restrição, ao passo que 68% os aceitariam apenas em situações clínicas
específicas (se fosse realmente preciso para melhorar os resultados clínicos -
51% - ou em caso de risco de morte - 17%). Outros 35 pesquisados (23% da
amostra), por sua vez, responderam que nunca os usariam. Embora esse dado não
contrarie a orientação da doutrina no sentido de que estas frações não
significam sangue, chama a atenção para a significativa recusa à sua
utilização.
Na
pergunta 7, quando foi perguntado se sentiriam ofendidos caso seu clínico de
confiança executasse alguma terapia com uso intra-operatório de material fresco
de seu próprio sangue sem lhes informar (hemodiluição normovolêmica aguda,
circulação extra-corpórea, recuperação intra-operatória de células, hemodiálise,
uso de plasma rico em plaquetas), apesar de que nenhuma resposta negativa foi
dada com relação ao uso de hemoderivados, 43% deixaram de responder à pergunta,
demonstrando certo grau de desconhecimento especificamente sobre esse tema.
Uma
correlação entre os resultados específicos e os aspectos socioculturais
constatados na pesquisa merece destaque: os pesquisados com escolaridade
superior são os que mais acreditam nos malefícios dos tratamentos com sangue.
No mesmo sentido, são os que mais evitam o uso de hemocomponentes e menos o de
hemoderivados. O grau de escolaridade, que está diretamente relacionado ao de
acesso a literaturas científicas, pode estar relacionado com tais posturas.
Vale
ressaltar que, mesmo com algumas interpretações variadas verificadas no estudo,
as testemunhas de Jeová compõem uma só comunidade. Para eles, compartilhar uma
moralidade comum não significa concordar em tudo e sempre: as pequenas
divergências não impedem que colaborem e se reconheçam como amigos morais, sem
perder a unicidade que a religião lhes proporciona16,18.
O
resultado de que 80% se sentiriam ofendidos com o uso de terapias com sangue
armazenado, embora 45% tenham manifestado em outra questão que ficariam
ofendidos também com terapias sanguíneas frescas, pode ser explicado, mais uma
vez, dentro deste contexto, ainda que os tratamentos com componentes sanguíneos
frescos costumem ser mais aceitos16.
A
saída do sangue do corpo por apenas alguns instantes, sem caracterizar
armazenamento, não impede que seja reaplicado na mesma pessoa, podendo ser até
mesmo sangue total3,16 - possibilidade que muitos pesquisados
demonstraram desconhecer - o que comprova a relativa aceitação de sangue pelas
testemunhas. Caso estas circunstâncias fossem mais bem divulgadas entre os profissionais
de saúde, certamente evitariam muitos conflitos legais, éticos e morais.
Sabe-se que já existem hoje muitos tratamentos que utilizam esta técnica em vez
das tradicionais transfusões de sangue total heterólogo armazenado.
CONCLUSÃO
A
Bíblia é a principal fonte doutrinária para a recusa de sangue pelas
testemunhas de Jeová. A busca da boa saúde e o fato de o sangue representar a
alma das pessoas são as justificativas mais frequentes para a recusa, apesar
delas também acreditarem que o sangue pode causar malefícios à saúde.
Hemoderivados
frescos são os mais aceitos. O sangue xenogênico é o único totalmente recusado.
Todavia, no caso do uso de sangue alogênico, há diversas ressalvas doutrinárias
e entendimentos particulares que dificultam o conhecimento por parte dos
profissionais de saúde no que diz respeito à sua aceitação e que,
consequentemente, acabam provocando conflitos legais, éticos e/ou morais.
Os
hemocomponentes são tratados pela doutrina como se fossem sangue total. Já os
hemoderivados não são considerados como sangue, portanto são aceitos inclusive
os xenogênicos. Contudo, os resultados do estudo mostram que nem todas as
testemunhas de Jeová acompanham este entendimento doutrinário, seja por falta
de informação específica ou por uma opção própria, já que a recomendação
religiosa não significa obrigatoriedade neste sentido.
Quando
os seguidores da doutrina apresentam interpretações particulares, que são
permitidas, em geral, elas são no sentido de proibir mais do que a religião já
o faz. Tais discrepâncias, contudo, não impedem a constatação de uma moralidade
comum e o reconhecimento de uma comunidade moral até mesmo homogênea, que
engloba verdadeiros "amigos morais", os quais divergem apenas em
alguns aspectos pontuais.
Os
profissionais de saúde que tratam diretamente com pacientes, no presente
estudo, representados por médicos e dentistas, ainda têm o foco unilateral de
seus atendimentos na condição clínica destes pacientes, esquecendo de vê-los
como sujeitos morais autônomos e senhores das próprias decisões. A
religiosidade dos pacientes faz parte deste contexto bioético e influi
diretamente em suas escolhas terapêuticas, assim como na própria expressão
cidadã de sua autonomia. Neste sentido, incluir, na anamnese, perguntas sobre a
religiosidade dos pacientes poderia evitar conflitos legais, éticos e morais,
bem como promover a proteção da autonomia e dos direitos cidadãos dos pacientes
testemunhas de Jeová.
Para
a adequada atenção em saúde dos pacientes testemunhas de Jeová, os profissionais
devem estar mais do que eticamente preparados, devem estar bioeticamente
preparados. Só assim poderão identificar os conflitos éticos e/ou morais na
relação, agindo positiva (informando e realizando o consentimento livre e
esclarecido) e/ou negativamente (não os coagindo a participar/não abandonar
tratamentos, mesmo que para salvar a vida) no sentido de proteger a autonomia e
demais direitos dos pacientes testemunhas de Jeová.
A
religião não impede o agir autônomo. O fato de uma pessoa ser testemunha de
Jeová e de rejeitar tratamentos com sangue não significa falta de autonomia. A
rejeição de sangue por uma testemunha de Jeová, na verdade, significa a
manifestação de um ponto de vista particular (sangue é alma) que se coaduna com
uma manifestação de autonomia prévia (no momento da escolha da religião). O
mero compartilhamento de ideias com uma doutrina religiosa não pode ser
considerado forma de coerção moral.
A
influência católica em nossa cultura, manifestada de certo modo pela
preferência pelo princípio da beneficência nas discussões éticas e/ou morais, é
latente na interpretação de nossa legislação. Sendo assim, decisões, mesmo que
devidamente autônomas, de testemunhas de Jeová não são respeitadas nos casos de
risco de vida, o que revela haver, em nossa sociedade, uma hierarquização
implícita de princípios, com a supervalorização, em regra, dos princípios da
beneficência e do direito à vida.
No
que tange ao princípio bioético da beneficência, importante destacar que ele
reza que o profissional busque fazer o bem "do paciente" e não aquilo
que acredita ser o seu bem. Esta consideração, no caso específico em tela, deve
levar em conta que o "melhor tratamento" para o médico e o dentista é
aquele mais eficaz. Todavia, para os pacientes testemunhas de Jeová, será
aquele que também respeite os ditames de sua consciência.
O
respeito à autonomia dos pacientes testemunhas de Jeová por parte de médicos e
dentistas é necessário. Todavia, somente será possível se houver autonomia
destes profissionais perante o Estado. No Brasil, isso não ocorre, pois tais
profissionais, caso respeitem a decisão do paciente e, por esta razão, o
paciente sofra lesão/morte, o profissional será denunciado pelo crime
correspondente ao resultado ocorrido.
A
relação dos médicos e dos dentistas com as testemunhas de Jeová é complexa,
envolvendo diversos fatores clínicos, técnicos, sociais, pessoais, legais,
religiosos e bioéticos, dentre eles, o pluralismo moral, a autonomia, o
paternalismo e os problemas que a judicialização da saúde trazem. Neste
sentido, hoje, um atendimento em saúde sem conflitos éticos e/ou morais exige
mais do que "boa vontade" do profissional, exige a visão ampla do
objeto do cuidado (o paciente) e a formação bioética destes profissionais.
REFERÊNCIAS
1.
Garrafa V. Bioética e ética profissional: esclarecendo a questão. Medicina
(Conselho Federal). 1998; 12(98):28.
2.
Trindade ES, Azambuja LEO, Andrade JP, Garrafa V. O médico frente ao
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Artigo
recebido: 11/08/10. Aceito para publicação: 03/09/10
Trabalho
realizado na Universidade de Brasília, Brasília, DF. *
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