sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

TRATAMENTO CIRÚRGICO DE ALOPECIA CICATRICIAL NO COURO CABELUDO E DEFEITO DA CALOTA CRANIANA EM CRIANÇA, SEM TRANSFUSÕES DE SANGUE

Blog TESTEMUNHAS DE JEOVÁ, de autoria de Superdotado Álaze Gabriel.
 
  
Autoria:
Juan Carlos Montano Pedroso - Cirurgião Plástico, Título de Especialista em Cirurgia Plástica da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP), Membro associado da SBCP, São Paulo, SP, Brasil;
Sandro Salanitri - Mestre em Medicina pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, Membro Titular da SBCP, Médico Voluntário da Santa Casa de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil;
Américo Helene Júnior - Doutor em Medicina pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, Membro Titular da SBCP, Chefe do Serviço de Cirurgia Plástica da Santa Casa de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.

RESUMO

INTRODUÇÃO: As Testemunhas de Jeová são um grupo religioso que não aceita as transfusões de sangue.
RELATO DO CASO: Os autores descrevem o caso de uma criança, Testemunha de Jeová, que apresentava alopecia cicatricial no couro cabeludo e defeito da calota craniana, resultantes de politraumatismo. O tratamento foi iniciado com a colocação de expansor no couro cabeludo e uso de eritropoetina e sulfato-ferroso para aumento dos níveis de hemoglobina. A retirada do expansor e a correção do defeito da calota craniana com placa de acrílico foram realizadas com sucesso e sem o emprego de transfusões de sangue.
DESCRITORES: Testemunhas de Jeová. Alopecia. Expansão de tecido. Transfusão de sangue. Eritropoetina.

INTRODUÇÃO

Realizar a correção cirúrgica de alopecia cicatricial no couro cabeludo e de defeito da calota craniana em uma criança sem transfusão de sangue pode constituir um desafio para os cirurgiões.
Embora as transfusões de sangue sejam utilizadas há décadas, recentemente o adequado papel da transfusão de sangue no manejo da anemia tem sido questionado1. Os cirurgiões estão cônscios não somente dos riscos associados às transfusões de sangue, mas também dos custos e suprimentos restritos das bolsas de sangue. Também há pacientes que devido a vários motivos, inclusive religiosos, não aceitam transfusões de sangue2. Tais fatores têm contribuído para a popularização de estratégias terapêuticas alternativas às transfusões de sangue, comumente denominadas de "gerenciamento e conservação do sangue"1. Tais princípios não deveriam limitar-se apenas ao tratamento das Testemunhas de Jeová, para as quais as transfusões de sangue não são uma opção terapêutica, mas deveriam constituir numa parte integral do dia-a-dia do cirurgião.
A reconstrução de defeitos do couro cabeludo é necessária em casos de trauma agudo, extirpação de tumores e melhora de cicatrizes inestéticas e alopecia. A utilização de expansão tecidual deve ser considerada especialmente nas lesões mais extensas, em que o uso de retalhos locais seja inadequado devido ao tamanho do defeito ou tecido local traumatizado3.
Os autores apresentam relato de caso de tratamento cirúrgico de alopecia cicatricial no couro cabeludo, com expansão tecidual e correção de defeito da calota craniana, em criança Testemunha de Jeová, com emprego de estratégias alternativas às transfusões de sangue.

RELATO DO CASO

B.L.A, 9 anos, sexo masculino, Testemunha de Jeová, vítima de politraumatismo aos 6 anos de idade por acidente automobilístico, com escalpelamento e fratura do crânio na região orbitofrontal direita, tratados com sutura da dura-máter nas bordas ósseas, desbridamento de tecidos desvitalizados e rotação de retalho local de couro cabeludo. Tratamentos alternativos à transfusão de sangue foram utilizados e o caso foi publicado na literatura4.
O paciente apresentava como sequelas, três anos após o politraumatismo, extensa alopecia cicatricial na região temporoparietal direita e frontal. A tomografia de crânio demonstrava pequena área cortical-subcortical hipoatenuante na região orbitofrontal direita de aspecto sequelar. Em decorrência da grande extensão da alopecia cicatricial, optou-se pela expansão tecidual do couro cabeludo para sua correção. Estratégias alternativas às transfusões de sangue foram utilizadas por se tratar de paciente Testemunha de Jeová. 
Com o paciente sob anestesia geral, foi realizada infiltração de solução de adrenalina 1:250.000, para reduzir o sangramento intraoperatório. Um expansor formato de rim de 480 ml foi colocado no plano subgaleal através de uma incisão temporal direita e parietal direita. O nível de hemoglobina no pré-operatório era de 12,5 g/dl e, no primeiro dia pós-operatório, diminuiu para 12,4 g/dl.
O paciente foi submetido à expansão tecidual do couro cabeludo, semanalmente, de maneira convencional, atingindo-se um volume de 660 ml. A fim de aumentar os níveis de hemoglobina para a segunda cirurgia, que apresentava maior potencial de sangramento, o paciente recebeu eritropoetina alfa na dose de 10000 UI (300 UI/kg), três vezes por semana, por via subcutânea, iniciando-se 4 semanas antes da data da cirurgia, totalizando 9 aplicações. A dosagem de ferritina sérica antes do início do tratamento com eritropoetina era de 107,7 ng/ml, dentro dos valores de referência para sua idade, demonstrando adequado estoque de ferro no organismo. O nível de hemoglobina no início do tratamento com eritropoetina era de 12,4 g/dl. Suplemento de ferro elementar por via oral, na dose diária de 5 mg/kg, e suplemento polivitamínico foram prescritos conjuntamente. Sete dias após o início do tratamento com eritropoetina e suplemento de ferro, já era observado aumento no número de reticulócitos. Ao término do tratamento, o nível de hemoglobina havia aumentado para 15,5 g/dl.
A segunda cirurgia foi realizada com o paciente sob anestesia geral, iniciando-se pela infiltração de solução de adrenalina 1:250.000. O expansor foi removido e as áreas de alopecia cicatricial foram retiradas. A equipe de neurocirurgia realizou o reparo do defeito orbitofrontal direito da calota craniana, com a colocação de uma placa de acrílico. O retalho expandido de couro cabeludo foi avançado, permitindo a completa cobertura do defeito. Um dia após a cirurgia, o nível de hemoglobina era de 12,1 g/dl. O paciente recebeu alta hospitalar no segundo dia pós-operatório, com ótima evolução.
  
DISCUSSÃO

"Gerenciamento e Conservação do Sangue" tem sido definido como "o uso apropriado do sangue e dos componentes do sangue, com o objetivo de minimizar seu uso"1. A exposição dos pacientes às transfusões de sangue pode ser minimizada pelo uso sistemático de múltiplas técnicas de conservação do sangue, que envolvem o uso apropriado de medicamentos, equipamentos e técnicas cirúrgicas, de forma isolada ou associada.
Várias técnicas cirúrgicas e anestésicas foram desenvolvidas para reduzir as perdas sanguíneas, tais como: abordagens que reduzem o sangramento (endoscopia e laparoscopia); desenvolvimento de instrumentos cirúrgicos hemostáticos (eletrocautério, coagulador com raio de argônio) e materiais biológicos, como a cola de fibrina, que diminuem áreas de sangramento; infiltração de solução vasoconstritora; uso de medicamentos que estimulam a produção de plaquetas (IL-11 recombinante); drogas que reduzem a perda sanguínea intraoperatória, como os concentrados de complexo protrombínico e antifibrinolíticos (ácido tranexâmico); uso da desmopressina (reduz o sangramento em pacientes tratados com antiinflamatórios não esteroides antes da cirurgia); drogas que auxiliam na redução do sangramento agudo (Fator VIIa); anestesia com hipotensão controlada; hemodiluição normovolêmica aguda; recuperação intraoperatória de células; manutenção da normotermia (a hipotermia reduz a função plaquetária, aumentando o sangramento)5,6.
No caso relatado, a correção do defeito da calota frontal foi realizada com placa de acrílico, pela equipe de neurocirurgia, embora a indicação preferencial para esta cranioplastia seja o uso da tábua externa parietal retirada sem craniotomia. A cranioplastia com acrílico na região frontal pode originar osteomielite no longo prazo, pela proximidade com o seio frontal, quando este se desenvolver completamente. Além disso, o crescimento da calota craniana da criança pode provocar desestabilização da placa futuramente. A infiltração de solução vasoconstritora no couro cabeludo, tanto na cirurgia de colocação do expansor como na sua retirada, permitiu a diminuição do sangramento dos tecidos moles.
O conhecimento de que o organismo humano com anemia desenvolve mecanismos compensatórios (aumento do débito cardíaco, deslocamento da curva de dissociação da hemoglobina para a direita) que lhe permitem maior tolerância à anemia também contribui para reduzir as transfusões de sangue. Estudos demonstraram que hematócritos tão baixos como 20% foram bem tolerados por crianças hemodinamicamente estáveis4. No entanto, o avanço mais significativo para evitar as transfusões de sangue é reconhecidamente o uso da eritropoetina.
A eritropoetina é uma glicoproteína produzida pelos rins, que age diretamente nos progenitores das hemácias na medula óssea, estimulando a proliferação, diferenciação e maturação eritrocitária4. Existem diversos agentes estimuladores da eritropoiese aprovados em testes clínicos, com diferentes propriedades farmacocinéticas e farmacodinâmicas. Podendo ser administrada por via subcutânea, a eritropoetina promove, em três dias, aumento do número de reticulócitos, e o equivalente a uma bolsa de sangue é produzido em 7 dias, e 5 bolsas de sangue, em 28 dias. O estímulo da eritropoiese pela eritropoetina independe da idade ou do gênero. O intervalo de tempo pré-operatório necessário para o estímulo adequado da eritropoiese é de cerca de 4 semanas7.
A eritropoetina tem sido usada com sucesso, evitando-se transfusões de sangue em vários procedimentos cirúrgicos com diversas recomendações de dosagem, como 300 UI/kg, três vezes por semana, durante 3-4 semanas e de 200 a 600 UI/kg, uma vez por semana, por quatro semanas7. Recomenda-se a verificação de um adequado ferro de depósito no organismo antes do início do tratamento com eritropoetina por meio da dosagem de ferritina sérica (ferritina acima de 100 ng/ml indica adequado ferro de depósito). Suplementação de ferro, folato e vitaminas B6, B12 e C são recomendados durante a terapia com eritropoetina, a fim de acelerar a resposta eritropoiética e evitar a depleção dos estoques de ferro. Embora neste relato de caso a estimulação da eritropoiese tenha sido realizada com eritropoetina e ferro oral, a literatura tem demonstrado a superioridade do ferro endovenoso em associação com a eritropoetina (ferro endovenoso 200 mg duas vezes por semana)8. Para a administração de ferro endovenoso, recomenda-se a diluição de 100 mg de ferro para 100 ml de solução salina isotônica e uma infusão lenta (1 ml por minuto).
Dentre os possíveis efeitos colaterais da eritropoetina, a literatura cita sintomas gripais autolimitados, hipertensão, reação anafilática, hipercalemia, trombocitose e trombose; raramente relatados4. A eritropoetina é contraindicada nos casos de hipersensibilidade à mesma, hipertensão arterial maligna, gravidez e lactação. A eritropoetina não apresenta interação medicamentosa clinicamente significativa e a segurança de seu uso em pacientes submetidos a procedimentos cirúrgicos tem sido demonstrada pela distribuição semelhante de efeitos adversos, inclusive eventos trombóticos, em pacientes tratados com eritropoetina ou placebo, em mais de 1000 pacientes participantes de ensaios clínicos7.
Várias são as complicações associadas às transfusões de sangue e até mesmo seus benefícios têm sido questionados. Uma revisão sistemática da literatura com metanálise, avaliando a eficácia das transfusões de sangue em pacientes críticos, foi recentemente publicada9. As revisões sistemáticas com metanálise são o tipo de estudo de maior evidência científica10. Esta revisão sistemática incluiu 45 estudos, compreendendo mais de 270 mil pacientes que foram divididos em diferentes grupos: vítimas de trauma, cirurgia geral, cirurgia cardíaca, entre outros. Dos 45 estudos avaliados, 42 demonstraram que os riscos das transfusões de sangue eram maiores que os benefícios (aumento de infecção, aumento de mortalidade), dois foram neutros e apenas um único estudo mostrou benefício num subgrupo específico de pacientes. Os autores da revisão concluem que as transfusões de sangue estão associadas a aumento da morbidade e mortalidade e que, portanto, as práticas atuais de transfusão de sangue precisam ser reavaliadas9.

CONCLUSÃO

A literatura tem demonstrado que procedimentos cirúrgicos podem ser realizados sem transfusão de sangue de forma segura, com uma preparação pré-operatória adequada. Diante da maior preocupação por parte dos cirurgiões em relação a eficácia, riscos, custos e suprimentos restritos das bolsas de sangue, os princípios de gerenciamento e conservação do sangue devem constituir numa parte integral do dia-a-dia do cirurgião. Várias são as estratégias alternativas à transfusão de sangue que podem ser empregadas em todos os pacientes, inclusive no tratamento das Testemunhas de Jeová, sendo uma das mais importantes a eritropoetina humana recombinante, utilizada neste relato de caso.

AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem ao Dr. Fernando José Cabral, membro da Society for the Advancement of Blood Management (SABM), pela ampla revisão bibliográfica exigida pelo presente trabalho.

REFERÊNCIAS

1. Goodnough LT, Shander A. Blood management. Arch Pathol Lab Med. 2007;131(5):695-701.
2. Gohel MS, Bulbulia RA, Slim FJ, Poskitt KR, Whyman MR. How to approach major surgery where patients refuse blood transfusion (including Jehovah's Witnesses). Ann R Coll Surg Engl. 2005;87(1):3-14.
3. Radwanski HN, Almeida MWR, Aguiar LFS, Altenhofen MS, Pitanguy I. Algoritmo para as alopécias cicatriciais e suas opções de tratamento. Rev Bras Cir Plást. 2009;24(2):170-5.
4. Digieri LA, Pistelli IP, Carvalho CE. The care of a child with multiple trauma and severe anemia who was a Jehovah's Witness. Hematology. 2006;11(3):187-91.
5. Centeno RF, Long CD, Granick MS. Elective plastic surgery in a Jehovah's Witness: a case series and review of the literature. Ann Plast Surg. 2000;45(3):244-51.
6. Shander A. Surgery without blood. Crit Care Med. 2003;31(12 Suppl):S708-14.
7. Goodnough LT, Monk TG. Erythropoietin therapy in the perioperative setting. Clin Orthop Relat Res. 1998;(357):82-8.
8. Rohling RG, Zimmermann AP, Breymann C. Intravenous versus oral iron supplementation for preoperative stimulation of hemoglobin synthesis using recombinant human erythropoietin. J Hematother Stem Cell Res. 2000;9(4):497-500.
9. Marik PE, Corwin HL. Efficacy of red blood cell transfusion in the critically ill: a systematic review of the literature. Crit Care Med. 2008;36(9):2667-74.

10. Goldenberg DC, Baroudi R. Medicina baseada em evidências: como e quando em cirurgia plástica? Rev Bras Cir Plást. 2009;24(1):I.





sábado, 2 de novembro de 2013

TRANSFUSÃO DE SANGUE EM TESTEMUNHAS DE JEOVÁ

Blog Testemunhas de Jeová, de autoria de Superdotado Álaze Gabriel.


  

Autoria:

José Roberto Goldim.


INTRODUÇÃO


Alegar um impedimento religioso para a realização de um ato médico é bastante mais frequente do que se imagina. Muitas vezes os pacientes ou seus familiares ficam constrangidos de utilizarem um referencial religioso para orientar a sua tomada de decisão. Algumas denominações religiosas, como, por exemplo, Ciência Cristã e Testemunhas de Jeová, são conhecidas por seus seguidores imporem restrições desta ordem a algumas formas de tratamento.

A questão que envolve a indicação médica de transfusão de sangue em pacientes Testemunha de Jeová é das mais polêmicas e conhecidas. Esta situação envolve um confronto entre um dado objetivo com uma crença, entre um benefício médico e o exercício da autonomia do paciente. Esta situação pode configurar o que hoje é denominado de Não-Consentimento Informado.

A base religiosa que os Testemunhas de Jeová alegam para não permitirem ser transfundidos é obtida em alguns textos contidos na Bíblia.

No livro do Gênesis (9:3-4) está escrito:


"Todo animal movente que está vivo pode servir-vos de alimento. Como no caso da vegetação verde, deveras vos dou tudo. Somente a carne com sua alma - seu sangue - não deveis comer."


No Levítico (17:10) existe outra restrição semelhante:


"Quanto qualquer homem da casa de Israel ou algum residente forasteiro que reside no vosso meio, que comer qualquer espécie de sangue, eu certamente porei minha face contra a alma que comer o sangue, e deveras o deceparei dentre seu povo."


Existe mais uma citação, ainda neste mesmo sentido nos Atos dos Apóstolos (15:19-21).

 Já existe uma farta bibliografia a respeito desta questão. A maioria divide-a em duas abordagens básicas: o paciente capaz de decidir moral e legalmente e o paciente incapaz.

 O paciente reconhecidamente capaz deve poder exercer a sua autonomia plenamente. Este posicionamento foi utilizado pelo Prof. Diego Gracia, da Universidade Complutense de Madrid/Espanha. O Prof. Gracia utiliza esta situação como paradigmática no exercício da autonomia do indivíduo frente a pressões sociais. O Prof. Dunn ressalta que esta é uma posição corajosa, mesmo que questionável por outras pessoas que não compartilham desta crença.

 Para alguns autores, como Genival Veloso de França este posicionamento só é válido enquanto não houver risco de morte iminente associado ao estado do paciente. Nesta situação o médico estaria autorizado a transfundir o paciente, mesmo contra a sua vontade, com base no princípio da Beneficência. O argumento utilizado é o de que a vida é um bem maior, tornando a realização do ato médico um dever prima facie, sobrepujando-se ao anterior que era o de respeitar a autonomia. Este posicionamento tem respaldo, inclusive no Código de Ética Médica.

Artigo 46 - (É vedado ao médico) efetuar qualquer procedimento médico sem o esclarecimento e o consentimento prévios do paciente ou de seu responsável legal, salvo em iminente risco de vida.

Artigo 56 - (É vedado ao médico) desrespeitar o direito do paciente de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo e, caso de iminente risco de vida.

O Conselho Federal de Medicina se manifestou, em 26 de setembro de 1980, através de uma resolução no. 1021, especificamente sobre a questão da transfusão de sangue em Testemunhas de Jeová.

A Constituição Brasileira de 1988 propõe a liberdade de crença para todo cidadão. Quando a situação envolve menores de idade ou outros pacientes tidos como incapazes, como por exemplo uma pessoa acidentada inconsciente, a questão ganha outras conotações, pois o papel de proteger o paciente, apesar da vontade expressa de seus responsáveis legais pode ser ampliado. A questão que pode ser levantada no caso de adolescentes é até que ponto eles não podem ser equiparados, desde o ponto de vista estritamente moral, aos adultos, quanto a sua opção religiosa. O Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 17, lhes dá o direito de exercerem sua liberdade de culto, garantindo igualmente o respeito a esta manifestação. Este mesmo Estatuto permite que, em caso de adoção, o menor com doze ou mais anos possa também se manifestar. Por que este consentimento também não pode ser ampliado para esta questão? Muitas vezes as equipes de saúde solicitam à Procuradoria da Infância e Adolescência que busque autorização judicial para a realização do procedimento, através da suspensão temporária do pátrio poder.

 A restrição à realização de transfusões de sangue pode gerar no médico uma dificuldade em manter o vínculo adequado com o seu paciente. Ambos tem diferentes perspectivas sobre qual a melhor decisão a ser tomada, caracterizando um conflito entre a autonomia do médico e a do paciente. Uma possível alternativa de resolução deste conflito moral é a de transferir o cuidado do paciente para um médico que respeite esta restrição de procedimento.

 Os seguidores desta denominação religiosa - Testemunhas de Jeová - estão muito bem organizados para auxiliarem as equipes de saúde no processo de tomada de decisão. Existem Comissões de Ligação com Hospitais, que são constituídas por pessoas que se dispõem a ir ao hospital prestar assessoria visando o melhor encaminhamento possível ao caso. A Comissão de Ligação de Hospitais dispõe de um cadastro de médicos que pode ser útil em tais situações.


BIBLIOGRAFIAS


SOCIEDADE TORRE DE VIGIA DE BÍBLIAS E TRATADOS (SEDE BRASILEIRA).  As Testemunhas de Jeová e a questão do sangue. Tatuí, SP: Torre de Vigia, 1977:4-8. 

FRANÇA, G.V.. Comentários ao Código de Ética Médica. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan, 1994:50-51, 62-63.


DUNN,  H.P.. Ethics for doctors, nurses and patients. New York: Alba House, 1994:131-132.






sexta-feira, 4 de outubro de 2013

TESTEMUNHAS DE JEOVÁ ANTE O USO DE HEMOCOMPONENTES E HEMODERIVADOS


Blog “TESTEMUNHAS DE JEOVÁ”, de autoria de Álaze Gabriel.


 

Autoria:

1 - Letícia Erig Osório de Azambuja - Mestre em Bioética, dentista e advogada, Brasília, DF;

2 - Volnei Garrafa - Pós-doutor em Bioética - Professor titular da Universidade de Brasília - UnB, Brasília, DF



RESUMO


OBJETIVO: Estudar o grau de conhecimento e aceitação de hemocomponentes e hemoderivados, frescos e armazenados, pelas testemunhas de Jeová e propor ferramentas bioéticas para o enfrentamento de eventuais conflitos éticos e morais nas relações com médicos e dentistas.

MÉTODOS: Aplicação de questionários a 150 testemunhas de Jeová que frequentam Salões do Reino no Distrito Federal, Brasil. Os questionários buscaram respostas a aspectos sociodemográficos relacionados à possível aceitação de hemocomponentes e hemoderivados pelos pesquisados, bem como a atitude dos profissionais de saúde ante à opção religiosa dos pacientes.

RESULTADOS: Dos pesquisados: 74% acreditam que usar sangue provoca mais malefícios do que benefícios à saúde (fundamentação essencialmente bíblica); 96% não aceitam usar hemocomponentes, mas 76% aceitam usar hemoderivados em situações específicas, demonstrando haver entendimentos particulares sobre o tema; 80% se sentem moralmente ofendidos com o uso de sangue armazenado e apenas 45% com sangue fresco, confirmando a interpretação religiosa de que produtos frescos são em geral mais aceitos; segundo 83% dos pesquisados, seus dentistas não perguntaram a religião dos pacientes contra 71% dos médicos, demonstrando pouca preocupação dos profissionais neste aspecto.

CONCLUSÃO: As testemunhas de Jeová são vistas por seus "estranhos morais" (aqui, médicos e dentistas) como religiosos que simplesmente "não aceitam sangue". Todavia, diversos tratamentos sanguíneos são hoje aceitos, o que não impede, por livre convicção, a recusa no recebimento de qualquer deles. As interpretações particulares costumam ampliar o rol de proibições e de conflitos morais, já que médicos e dentistas, além de não considerar estas particularidades, também não perguntam a religião na anamnese.


Unitermos: Testemunhas de Jeová. Medicamentos hemoderivados. Substitutos sanguíneos. Bioética. Autonomia pessoal. Autonomia profissional.


SUMMARY


OBJECTIVE: To study extent of knowledge and acceptance of hemocomponents and hemoderivatives, fresh and stored, by Jehovah's Witnesses and also propose bioethical tools for any ethical and moral conflicts identified in their relationship with physicians and dentists.

METHODS: A questionnaire was used to interview 150 Jehovah's Witnesses who attend "Salões do Reino" in the Distrito Federal, Brazil. The questionnaire was directed towards information on socio-demographic aspects related to the use (or not ) of hemocomponents and hemoderivatives by those interviewed and also approach of healthcare professionals with patients of this belief.

RESULTS: 74% believe that the use of blood causes more harm than benefits to health - refusal is essentially based on the Bible 96% do not support hemocomponents, but 76% support hemoderivatives in specific situations, showing that personal understandings do exist; 80% feel morally offended with use of stored blood and only 45% with fresh blood, confirming the religious interpretation that fresh products are in general more accepted; according to 83% of the interviewees dentists do not ask about patients' religion, whereas 71% of physicians do, showing little professional concern about this aspect.

CONCLUSION: Jehovah's Witnesses are seen by their "moral outsiders" (here physicians and dentists) as the religious group that simply "does not use blood". Although, several blood treatments are nowadays permitted,. it does not deprive them from a free conviction to refuse blood treatments. Their particular understandings frequently extend the list of blood prohibitions and, consequently, the number of moral conflicts, when considering that physicians and dentists usually do not ask about a patient's religion.


Key words: Jehovah's Witnesses. Blood component transfusion. Blood substitutes. Bioethics. Personal autonomy. Professional autonomy.


INTRODUÇÃO


As transformações éticas, morais e legais associadas ao progresso técnico-científico dos últimos anos trouxeram situações novas às práticas em saúde, modificando o relacionamento dos profissionais com seus pacientes de modo a torná-lo menos orientado aos deveres e obrigações morais (deontologia) e mais voltado ao respeito à autonomia e ao pluralismo moral (bioética)1,2,3,4.

A relação profissional-paciente é naturalmente assimétrica e vertical. Tal característica se torna mais acentuada quando o profissional define unilateralmente as decisões terapêuticas a serem tomadas. Nestes casos o profissional age com um ideal de beneficência exagerado, o que faz com que acabe assumindo, na prática, uma posição paternalista, decidindo pelo outro. O limite da beneficência é a autonomia5.

Novas técnicas que podem trazer benefícios do ponto de vista terapêutico, por vezes, esbarram em questões de cunho moral, ético e/ou religioso. Dentre as novas situações ética e moralmente conflituosas em saúde está a aplicação das novas terapias com hemocomponentes e hemoderivados em pacientes testemunhas de Jeová.

Hemocomponentes e hemoderivados têm papel importante dentro dos tratamentos à base de sangue, hoje, com ampla utilização nos campos médico e odontológico. Estes biomateriais possibilitam a criação e ampliação de diversas técnicas, além de proporcionar mais conforto, acelerar e melhorar a cicatrização de leitos cirúrgicos6,7 .

O processo de regeneração (formação de tecido funcional e morfologicamente restaurado, igual em propriedades e estrutura ao tecido perdido) costuma ser naturalmente substituído pelo reparo, com densidade e qualidades nitidamente inferiores8. Para que a regeneração tecidual seja obtida na cicatrização, alguns fatores devem estar presentes: a qualidade do tecido doado, a vascularização da área receptora, a imobilização do enxerto e a eficiência dos mecanismos de reparo. Dentre eles, apenas o último independe exclusivamente da técnica cirúrgica executada, podendo ser melhorado com o uso de biomateriais sanguíneos6,9.

Dentre os tratamentos sanguíneos que podem auxiliar neste e em outros processos fisiológicos e que também são particularmente relevantes à questão do uso em pacientes testemunhas de Jeová, pode-se mencionar: sangue total (transfusão), hemocomponentes (plasma, hemácias, plaquetas, plasma rico em plaquetas e gel de plaquetas), hemoderivados (cola de fibrina, soros, vacinas, expansores de plasmáticos e fatores de coagulação) e outros (cell saver, hemodiálise, circulação extracorpórea, carreadores de oxigênio livre de células e hemodiluição [iso]normovolêmica aguda).

O Brasil é um país laico e com o pluralismo religioso constitucionalmente protegido10. Além disso, segundo dados de 2009, é o segundo país do mundo em número absoluto de testemunhas de Jeová com mais de 700 mil seguidores11. Mesmo com tais números e garantias, continuam a ocorrer conflitos nos tratamentos médicos e odontológicos com seguidores da religião. Nem mesmo o fato de haver previsão de crime de constrangimento ilegal (artigo 146, § 3º, I do Código Penal Brasileiro) para médico ou dentista que obrigue paciente testemunha de Jeová, consciente e civilmente capaz, a receber sangue, impede o desrespeito à autonomia dos mesmos10,12.

O responsável por estabelecer proibição à transfusão de sangue, a vacinas e a transplantes de órgãos entre as testemunhas de Jeová foi Nathan Homer Knorr. Segundo a revista The Watchtower de 1º de dezembro de 1944, a proibição de comer sangue que, consta na Bíblia, deveria ser estendida aos tratamentos médicos13. Em 1945, esta proibição foi ampliada, incluindo também sangue de animais, transplantes de órgãos e tecidos e vacinas13,14.

Tais fundamentos estariam prescritos em diversas passagens bíblicas, que, embora não estejam escritas expressamente em termos técnicos, são interpretadas como sendo proibitivas ao uso de sangue na área biomédica3,4. Eis algumas passagens que se referem à abstinência de sangue, à busca da boa saúde e ao sangue como a alma dos seres: Gênesis 9: 3, 4, 5 e 6; Levítico 17: 10, 11, 12, 13 e 14; Atos dos Apóstolos 15: 20, 28 e 29; e Deuteronômio 12: 23, 24 e 25; 1 Samuel 14: 32, 33 e 3415,16,17.

Todavia, a interpretação dos tratamentos sanguíneos segundo a religião mudou ao longo do tempo, pois novas técnicas foram criadas, assim como surgiram novas interpretações. Por outro lado, entendimentos particulares, feitas por cada testemunha, não são restringidas, o que resulta em ampliação do rol de proibições13,16.

De modo geral, hoje, diversos tratamentos que envolvem sangue são tolerados pelas testemunhas de Jeová. Todavia, muitos médicos e dentistas ou desconhecem este fato ou simplesmente não sabem que seu paciente é uma testemunha de Jeová já que não costumam incluir na anamnese tal questionamento, o que cria a priori um problema concreto com relação ao respeito à autonomia destes pacientes13,16,17.

Como regra geral, o uso de produtos sanguíneos xenogênicos não é aceito e o uso de alogênicos é feito com ressalvas. No que tange ao sangue total e aos hemocomponentes (leucócitos, eritrócitos, plasma ou plaquetas) armazenados e/ou heterólogos (de outro indivíduo), não há aceitação. Já em relação aos hemoderivados (diminutas frações) não há qualquer proibição, pois não são considerados sangue (alma) pela doutrina religiosa. Outras terapias com material autólogo e fresco (como a circulação extracorpórea, o cell saver, a hemodiálise e o plasma rico em plaquetas) são geralmente aceitas16. Para mais detalhes, vide Quadro 1.



Com diferentes interpretações e a falta de conhecimento ou interesse pelos profissionais de saúde, as testemunhas de Jeová, aos olhos de seus "estranhos morais", segundo Engelhardt (médicos e dentistas não-Testemunhas, no caso), são simplesmente religiosos que "não aceitam sangue", fato que representa campo propício ao surgimento de conflitos18,19.

A presente pesquisa teve como objetivo geral estudar a posição das testemunhas de Jeová do Distrito Federal, Brasil, ante ao uso terapêutico de hemoderivados e hemocomponentes, frescos e armazenados. Os objetivos específicos foram: estudar o grau de conhecimento e de aceitação das referidas terapias pelas testemunhas de Jeová; analisar aspectos socioculturais dos pesquisados; identificar, em relação aos profissionais de saúde, se há preocupação com a religiosidade dos pacientes na anamnese; e propor ferramentas bioéticas para a solução de eventuais conflitos encontrados.


MÉTODOS


Trata-se de estudo descritivo qualitativo de corte transversal. A pesquisa foi realizada com amostra aleatória e de conveniência de 150 testemunhas de Jeová que praticam a religião no Distrito Federal, Brasil. Não houve qualquer restrição pessoal quanto ao pesquisado, desde que os menores fossem assistidos/representados por seus responsáveis. Os critérios de exclusão incluíram analfabetos e aqueles que não desejaram participar da pesquisa.

A Comissão de Ligação com Hospitais para testemunhas de Jeová (Colih) autorizou a pesquisa, contatou os sujeitos, prestou informações e auxiliou na distribuição dos questionários. Tal participação foi essencial, tendo em vista os requisitos da Resolução nº 196/1996 do Ministério da Saúde e a dificuldade de se contatar tais sujeitos de maneira isolada.

Os questionários foram distribuídos em Salões do Reino (locais onde as testemunhas de Jeová se reúnem e professam sua fé) que abrangem os seguintes bairros do Distrito Federal: Cruzeiro Novo, Cruzeiro Velho, Setor Octogonal, Setor Sudoeste, Setor de Mansões Park Way, Águas Claras e Taguatinga.

O questionário foi composto de perguntas fechadas, dividido em duas partes: parte I (dados gerais) com três questões sobre a idade, sexo e grau de escolaridade do pesquisado; e parte II (questionário específico) com seis perguntas que atendiam aos objetivos do estudo. Juntamente a uma folha com explicações sobre a pesquisa, foi entregue uma cópia do questionário e duas vias do Termo de Consentimento Informado (TCI). Todos os 150 questionários distribuídos foram devolvidos devidamente preenchidos.

A metodologia do estudo respeitou as normas de ética em pesquisa com seres humanos estabelecidas na Resolução nº 196/1996 do Ministério da Saúde, tendo sido previamente aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília, sob o registro 070/2009. Os dados foram computados pelo método de porcentual simples, com desprezo de casas decimais, com o programa Excel® da Microsoft para a tabulação, o cruzamento dos dados e a confecção dos gráficos.


RESULTADOS


A primeira pergunta da parte I do questionário (dados gerais), sobre a idade dos sujeitos de pesquisa, apresentou os seguintes resultados: a) 28% até 30 anos (42 pesquisados); b) 25% de 31 a 40 anos (38 pesquisados); c) 26% de 41 a 50 anos (39 pesquisados); d) 14% de 51 a 60 anos (21 pesquisados); e) 7% mais de 60 anos (10 pesquisados).

A segunda pergunta, sobre o sexo dos sujeitos de pesquisa, apresentou os seguintes resultados: a) 39% masculino (59 pesquisados); b) 60% feminino (90 pesquisados); c) >1% sem resposta (1 pesquisado).

A terceira pergunta da parte I, sobre o nível de escolaridade, apresentou os seguintes resultados: a) 5% primário incompleto (7 pesquisados); b) 2% primário completo (4 pesquisados); c) 11% secundário incompleto (17 pesquisados); d) 33% secundário completo (49 pesquisados); e) 13% superior incompleto (20 pesquisados); f) 23% superior completo (34 pesquisados); g) 13% pós-graduação (19 pesquisados).

A primeira pergunta da parte II do questionário (questionário específico), - O seu médico já lhe perguntou qual é a sua religião?, apresentou os seguintes resultados: a) 28% já perguntou (42 pesquisados); b) 71% nunca perguntou (107 pesquisados); c) >1% sem resposta (1 pesquisado).

A segunda pergunta da parte II, - O seu dentista já lhe perguntou qual é a sua religião?, apresentou os seguintes resultados: a) 17% já perguntou (25 pesquisados); b) 83% nunca perguntou (125 pesquisados).

A terceira pergunta, Você acha que as terapias médicas e/ou odontológicas que usam o sangue com seus quatro hemocomponentes (glóbulos vermelhos + glóbulos brancos + plaquetas + plasma) para diminuir o risco de morte ou melhorar a cicatrização de cirurgias trazem mais benefícios ou mais malefícios à saúde física das pessoas?, apresentou os seguintes resultados: a) >1% trazem mais benefícios (1 pesquisado); b) 74% trazem mais malefícios (110 pesquisados); c) 13% são terapias como qualquer outra, com malefícios e benefícios (20 pesquisados); d) 9% não conheço estas terapias (13 pesquisados); e) 4% sem resposta (6 pesquisados). Algumas pessoas, mesmo não havendo comando para tanto, ainda comentaram a questão: a) nenhuma dessas respostas considerando que deve ser analisado a fundo cada procedimento (1 pessoa); b) a visão das testemunhas independe de resultados (2 pessoas); c) rejeito tal terapia (1 pessoa); d) preciso ser informado de cada procedimento (1 pessoa).

A quarta pergunta da parte II do questionário, Você aceitaria alguma terapia médica e/ou odontológica que utilizasse de forma separada apenas um dos hemocomponentes (glóbulos vermelhos ou glóbulos brancos ou plaquetas ou plasma)", apresentou os seguintes resultados: a) >1% sempre autorizaria (1 pesquisado); b) 2% somente se fosse realmente preciso para melhorar a recuperação e/ou resultados (3 pesquisados); c) 1% em caso de risco de morte apenas (2 pesquisados); d) 96% nunca usaria (144 pesquisados).

A quinta pergunta, Os hemocomponentes descritos acima ainda podem ser divididos em pedaços menores, chamados de hemoderivados (exemplo: albumina, fibrinogênio, imunoglobulinas e fatores de coagulação). Você aceitaria alguma terapia médica e/ou odontológica que utilizasse apenas estes "hemoderivados" em seu corpo?, apresentou os seguintes resultados: a) 8% sempre autorizaria (12 pesquisados); b) 51% somente se fosse realmente preciso para melhorar a recuperação e/ou resultados (77 pesquisados); c) 17% apenas em caso de risco de morte (25 pesquisados); d) 23% nunca usaria (35 pesquisados); e) >1% sem resposta (1 pesquisado).

A sexta pergunta, Você se sentiria ofendido moralmente se o médico ou dentista que está lhe tratando com a sua devida autorização fizesse alguma terapia com 'hemocomponentes e/ou hemoderivados de sangue NÃO-FRESCO' sem lhe informar este fato?, apresentou os seguintes resultados: a) 1% eu não ficaria ofendido, pois aceito estes tratamentos (2 pesquisados); b) 8% eu ficaria ofendido somente se fosse com hemocomponentes não-frescos (12 pesquisados); c) >1% eu ficaria ofendido somente se fosse com hemoderivados não-frescos (1 pesquisado); d) 80% qualquer terapia com sangue não-fresco me deixaria ofendido (120 pesquisados); e) 10% sem resposta (15 pesquisados). Algumas pessoas, mesmo não havendo comando para tanto, ainda comentaram a questão: a) eu ficaria ofendido apenas por não ser informado (1 pessoa); b) ficaria ofendido com qualquer terapia (1 pessoa); e c) apesar da autorização, preciso ser informado de cada procedimento (4 pessoas).

A sétima pergunta da parte II do questionário, Você se sentiria ofendido moralmente se o médico ou dentista que está lhe tratando com a sua devida autorização fizesse alguma terapia com o uso intra-operatório de material FRESCO de seu próprio sangue (exemplo: hemodiluição normovolêmica aguda, circulação extracorpórea, recuperação intraoperatória de células, hemodiálise, uso de plasma rico em plaquetas) sem lhe informar este fato?", apresentou os seguintes resultados: a) 3% eu não ficaria ofendido, pois aceito qualquer terapia com sangue fresco (4 pesquisados); b) 8% eu ficaria ofendido somente se fosse com hemocomponentes frescos (12 pesquisados); c) 0% eu ficaria ofendido somente se fosse com hemoderivados frescos (0 pesquisados); d) 45% qualquer terapia com sangue fresco me deixaria ofendido (68 pesquisados); e) 44% sem resposta (66 pesquisados).

Mesmo não havendo comando para tanto, 28 pesquisados justificaram assim esta última questão: a) especialmente porque não me informou (4 pessoas); b) O médico ou profissional de saúde deve me esclarecer antecipadamente o que pretende usar (terapia, procedimento, etc.). No caso de emergências e/ou inconsciência, deixo formalizado num documento com firma reconhecida do que aceito ou rejeito (1 pessoa); c) ficaria ofendido com qualquer terapia (1 pessoa); d) apenas se não fosse informado do procedimento, pois aceito algumas terapias que utilizariam meu próprio sangue (1 pessoa); e) preciso ser informado de cada procedimento (14 pessoas); e f) a ética exige que fique sabendo antes de cada procedimento" (7 pessoas).

O cruzamento dos aspectos sociodemográficos com os demais dados específicos não apresentou qualquer relevância estatística.


DISCUSSÃO


Uma anamnese bem executada pode evitar complicações clínicas, éticas e jurídicas, além de possibilitar o diálogo entre sujeitos de relações discrepantes e reforçar a autonomia dos pacientes. Ela é o primeiro contato do profissional com seu paciente, de onde se extraem informações necessárias a um atendimento mais integral e não apenas clínico. Neste sentido, pode proporcionar melhores informações com relação a um possível uso de componentes sanguíneos, pois auxilia no correto planejamento terapêutico, o que, para as testemunhas de Jeová, é de especial relevância20.

Todavia, apesar do exposto, na amostra que sustenta o presente estudo apenas 28% dos médicos e somente 17% dos dentistas perguntaram qual a religião do paciente no atendimento clínico. Tal conduta não se mostra condizente com a legislação do Brasil, país onde a pesquisa foi desenvolvida e que é constitucionalmente laico e religiosamente pluralista10.

Tudo isso mostra que os avanços éticos no campo profissional biomédico não têm acompanhado o desenvolvimento tecnocientífico na mesma proporção, visto que a preocupação com o estado clínico e em oferecer os melhores e mais modernos tratamentos aos pacientes ainda constitui o foco unilateral do atendimento, independentemente das opções morais pessoais destes pacientes1,5.

Alguns pesquisados chegaram a mencionar que seria "falta de ética" do profissional não explicar cada procedimento. Conflitos éticos acontecem mais comumente entre aquelas pessoas que Engelhardt denomina de "estranhos morais"18, indivíduos que não compartilham uma mesma moralidade e que necessitam dialogar para chegar a possíveis acordos21. E exatamente isso que ocorre entre pacientes testemunhas de Jeová e profissionais de saúde não-testemunhas, já que, aos olhos de seus "estranhos morais", tais pacientes são apenas religiosos que "não aceitam sangue" - o que não condiz com a realidade18.

A maioria dos pesquisados (74%) acredita que as terapias sanguíneas provocam mais malefícios do que benefícios à saúde. A literatura científica realmente refere inúmeras reações indesejadas ao uso de sangue22. A doutrina das testemunhas e a própria Bíblia se expressam no mesmo sentido, já que a busca da boa saúde estaria relacionada à abstenção do uso de sangue (Atos dos Apóstolos 15: 29)15. Assim, usar sangue para um seguidor da doutrina seria não apenas ferir sua crença e sua interpretação bíblica (principal fundamento), mas seu direito de escolha a um tratamento até mesmo mais saudável sob seu próprio ponto de vista23.

As testemunhas de Jeová aceitam os tratamentos médicos e odontológicos em geral, inclusive alguns que utilizam sangue. Entretanto, a regra é rejeitar seu uso. Interpretações pessoais são permitidas pela religião e ocorrem principalmente no sentido de rejeitar mais do que é permitido, pois há testemunhas que consideram mesmo os hemoderivados como sangue (alma), além de não aceitar "tudo" que se relacione a sangue de alguma forma3,16.

Os hemocomponentes são os menos aceitos (menos de 4% os usaria), já que este biomaterial é rejeitado pela doutrina religiosa como se fosse sangue total, ou seja, só poderia ser aceito se homólogo e fresco. Quanto aos hemoderivados, o dogma das testemunhas de Jeová não os reconhece como sangue, pois constituem apenas diminutas frações deste tecido. Todavia, apesar de haver permissão doutrinária para seu uso, somente 8% dos pesquisados os acatam sem qualquer restrição, ao passo que 68% os aceitariam apenas em situações clínicas específicas (se fosse realmente preciso para melhorar os resultados clínicos - 51% - ou em caso de risco de morte - 17%). Outros 35 pesquisados (23% da amostra), por sua vez, responderam que nunca os usariam. Embora esse dado não contrarie a orientação da doutrina no sentido de que estas frações não significam sangue, chama a atenção para a significativa recusa à sua utilização.

Na pergunta 7, quando foi perguntado se sentiriam ofendidos caso seu clínico de confiança executasse alguma terapia com uso intra-operatório de material fresco de seu próprio sangue sem lhes informar (hemodiluição normovolêmica aguda, circulação extra-corpórea, recuperação intra-operatória de células, hemodiálise, uso de plasma rico em plaquetas), apesar de que nenhuma resposta negativa foi dada com relação ao uso de hemoderivados, 43% deixaram de responder à pergunta, demonstrando certo grau de desconhecimento especificamente sobre esse tema.

Uma correlação entre os resultados específicos e os aspectos socioculturais constatados na pesquisa merece destaque: os pesquisados com escolaridade superior são os que mais acreditam nos malefícios dos tratamentos com sangue. No mesmo sentido, são os que mais evitam o uso de hemocomponentes e menos o de hemoderivados. O grau de escolaridade, que está diretamente relacionado ao de acesso a literaturas científicas, pode estar relacionado com tais posturas.

Vale ressaltar que, mesmo com algumas interpretações variadas verificadas no estudo, as testemunhas de Jeová compõem uma só comunidade. Para eles, compartilhar uma moralidade comum não significa concordar em tudo e sempre: as pequenas divergências não impedem que colaborem e se reconheçam como amigos morais, sem perder a unicidade que a religião lhes proporciona16,18.

O resultado de que 80% se sentiriam ofendidos com o uso de terapias com sangue armazenado, embora 45% tenham manifestado em outra questão que ficariam ofendidos também com terapias sanguíneas frescas, pode ser explicado, mais uma vez, dentro deste contexto, ainda que os tratamentos com componentes sanguíneos frescos costumem ser mais aceitos16.

A saída do sangue do corpo por apenas alguns instantes, sem caracterizar armazenamento, não impede que seja reaplicado na mesma pessoa, podendo ser até mesmo sangue total3,16 - possibilidade que muitos pesquisados demonstraram desconhecer - o que comprova a relativa aceitação de sangue pelas testemunhas. Caso estas circunstâncias fossem mais bem divulgadas entre os profissionais de saúde, certamente evitariam muitos conflitos legais, éticos e morais. Sabe-se que já existem hoje muitos tratamentos que utilizam esta técnica em vez das tradicionais transfusões de sangue total heterólogo armazenado.


CONCLUSÃO


A Bíblia é a principal fonte doutrinária para a recusa de sangue pelas testemunhas de Jeová. A busca da boa saúde e o fato de o sangue representar a alma das pessoas são as justificativas mais frequentes para a recusa, apesar delas também acreditarem que o sangue pode causar malefícios à saúde.

Hemoderivados frescos são os mais aceitos. O sangue xenogênico é o único totalmente recusado. Todavia, no caso do uso de sangue alogênico, há diversas ressalvas doutrinárias e entendimentos particulares que dificultam o conhecimento por parte dos profissionais de saúde no que diz respeito à sua aceitação e que, consequentemente, acabam provocando conflitos legais, éticos e/ou morais.

Os hemocomponentes são tratados pela doutrina como se fossem sangue total. Já os hemoderivados não são considerados como sangue, portanto são aceitos inclusive os xenogênicos. Contudo, os resultados do estudo mostram que nem todas as testemunhas de Jeová acompanham este entendimento doutrinário, seja por falta de informação específica ou por uma opção própria, já que a recomendação religiosa não significa obrigatoriedade neste sentido.

Quando os seguidores da doutrina apresentam interpretações particulares, que são permitidas, em geral, elas são no sentido de proibir mais do que a religião já o faz. Tais discrepâncias, contudo, não impedem a constatação de uma moralidade comum e o reconhecimento de uma comunidade moral até mesmo homogênea, que engloba verdadeiros "amigos morais", os quais divergem apenas em alguns aspectos pontuais.

Os profissionais de saúde que tratam diretamente com pacientes, no presente estudo, representados por médicos e dentistas, ainda têm o foco unilateral de seus atendimentos na condição clínica destes pacientes, esquecendo de vê-los como sujeitos morais autônomos e senhores das próprias decisões. A religiosidade dos pacientes faz parte deste contexto bioético e influi diretamente em suas escolhas terapêuticas, assim como na própria expressão cidadã de sua autonomia. Neste sentido, incluir, na anamnese, perguntas sobre a religiosidade dos pacientes poderia evitar conflitos legais, éticos e morais, bem como promover a proteção da autonomia e dos direitos cidadãos dos pacientes testemunhas de Jeová.

Para a adequada atenção em saúde dos pacientes testemunhas de Jeová, os profissionais devem estar mais do que eticamente preparados, devem estar bioeticamente preparados. Só assim poderão identificar os conflitos éticos e/ou morais na relação, agindo positiva (informando e realizando o consentimento livre e esclarecido) e/ou negativamente (não os coagindo a participar/não abandonar tratamentos, mesmo que para salvar a vida) no sentido de proteger a autonomia e demais direitos dos pacientes testemunhas de Jeová.

A religião não impede o agir autônomo. O fato de uma pessoa ser testemunha de Jeová e de rejeitar tratamentos com sangue não significa falta de autonomia. A rejeição de sangue por uma testemunha de Jeová, na verdade, significa a manifestação de um ponto de vista particular (sangue é alma) que se coaduna com uma manifestação de autonomia prévia (no momento da escolha da religião). O mero compartilhamento de ideias com uma doutrina religiosa não pode ser considerado forma de coerção moral.

A influência católica em nossa cultura, manifestada de certo modo pela preferência pelo princípio da beneficência nas discussões éticas e/ou morais, é latente na interpretação de nossa legislação. Sendo assim, decisões, mesmo que devidamente autônomas, de testemunhas de Jeová não são respeitadas nos casos de risco de vida, o que revela haver, em nossa sociedade, uma hierarquização implícita de princípios, com a supervalorização, em regra, dos princípios da beneficência e do direito à vida.

No que tange ao princípio bioético da beneficência, importante destacar que ele reza que o profissional busque fazer o bem "do paciente" e não aquilo que acredita ser o seu bem. Esta consideração, no caso específico em tela, deve levar em conta que o "melhor tratamento" para o médico e o dentista é aquele mais eficaz. Todavia, para os pacientes testemunhas de Jeová, será aquele que também respeite os ditames de sua consciência.

O respeito à autonomia dos pacientes testemunhas de Jeová por parte de médicos e dentistas é necessário. Todavia, somente será possível se houver autonomia destes profissionais perante o Estado. No Brasil, isso não ocorre, pois tais profissionais, caso respeitem a decisão do paciente e, por esta razão, o paciente sofra lesão/morte, o profissional será denunciado pelo crime correspondente ao resultado ocorrido.

A relação dos médicos e dos dentistas com as testemunhas de Jeová é complexa, envolvendo diversos fatores clínicos, técnicos, sociais, pessoais, legais, religiosos e bioéticos, dentre eles, o pluralismo moral, a autonomia, o paternalismo e os problemas que a judicialização da saúde trazem. Neste sentido, hoje, um atendimento em saúde sem conflitos éticos e/ou morais exige mais do que "boa vontade" do profissional, exige a visão ampla do objeto do cuidado (o paciente) e a formação bioética destes profissionais.


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23. Beauchamp TL, Childress, JF. Principles of biomedical ethics. 6th ed. New York: Oxford; 2009.



Artigo recebido: 11/08/10. Aceito para publicação: 03/09/10


Trabalho realizado na Universidade de Brasília, Brasília, DF. * Correspondência: Campus Universitário Darcy Ribeiro Faculdade de Ciências da Saúde Caixa Postal: 04451 CEP: 70.904-970 Telefone: (61) 31071968 / 31071969 bioetica@unb.br.