BLOG TESTEMUNHAS DE JEOVÁ, DE AUTORIA DE ÁLAZE GABRIEL.
DISPONÍVEL EM http://alazegabriel.blogspot.com.br/
Autoria:
Julio
Cesar Wiederkehr - TCBC-PR - Cirurgião Geral e Chefe do Serviço de
Transplante Hepático da Irmandade Santa Casa de Misericórdia de Curitiba.
Marcelo
Ekermann - Cirurgião do Serviço de Transplante Hepático da Irmandade Santa
Casa de Misericórdia de Curitiba.
William
Kondo - AsCBC-PR - Residente de Cirurgia Geral do Hospital Universitário
Cajuru e da Irmandade Santa Casa de Misericórdia de Curitiba (Aliança Saúde –
PUC-PR).
INTRODUÇÃO
O
carcinoma hepatocelular é um dos tumores malignos mais prevalentes no mundo e a
hepatectomia parcial tem sido a terapia de escolha para os pacientes com
reserva hepática suficiente, cujo tumor pode ser ressecado completamente1,2.
O intuito deste artigo é relatar o caso de um paciente testemunha de Jeová
submetido à ressecção hepática ex-vivo, ex-situ, sem a utilização de
hemoderivados.
RELATO
DE CASO
Paciente
de 28 anos, masculino, Testemunha de Jeová, procurou o serviço queixando-se de
aumento progressivo do volume abdominal há dois anos, associado a astenia,
hiporexia e perda de 5kg. Ao exame físico apresentava uma massa palpável na
região epigástrica, endurecida, indolor e fixa, medindo 15cm de diâmetro.
Tomografia
computadorizada abdominal mostrou uma massa heterogênea no lobo hepático
esquerdo com calcificações no interior, comprometendo segmentos II, III, IV e
parte do segmento V. Angiorressonância magnética demonstrou uma lesão mal
delimitada acometendo o lobo hepático esquerdo, com compressão da veia hepática
média e cava retro-hepática, medindo 14x12,5x10cm.
O
tratamento cirúrgico foi proposto ao paciente levando- se em consideração as
crenças religiosas das testemunhas de Jeová, que proíbem o uso de sangue e seus
derivados e mesmo transfusões autólogas caso não haja contato contínuo entre a
circulação e o sangue autólogo.
No
pré-operatório o paciente recebeu suplementação nutricional, eritropoetina e
sulfato ferroso. Foi submetido à laparotomia exploradora através de incisão
subcostal bilateral e a ressecabilidade da lesão foi confirmada. Para evitar
sangramento volumoso durante a hepatectomia, foi optado pela realização de
ressecção hepática ex-situ, ex-vivo. Após reparar o colédoco, a artéria
hepática, e as veias porta, cava inferior e hepáticas direita e esquerda, o
paciente foi colocado em circulação extracorpórea. O fígado foi retirado e
perfundido com solução de preservação de Belzer. A hepatectomia foi realizada e
o lobo hepático direito reimplantado com anastomose término-terminal das
estruturas previamente seccionadas. O uso da recuperação celular ("cell
saver") permitiu a recuperação de 450ml de sangue autólogo, que foi
reinfundido no paciente durante a cirurgia. A duração do procedimento foi de
nove horas e o valor da hemoglobina no final da cirurgia foi de 10,0g/dl.
No pós-operatório foram tomadas precauções para
minimizar as coletas de sangue e para otimizar a síntese eritrocitária com
eritropoetina, ácido fólico, vitamina B12 e ferro. O paciente apresentou um
curso pós-operatório sem intercorrências e recebeu alta hospitalar no 10º dia
após a cirurgia. A histologia demonstrou carcinoma hepatocelular.
DISCUSSÃO
A
ressecção hepática e o transplante hepático são os tratamentos de escolha para
os pacientes com câncer hepatocelular. Quando não há uma doença de base, a
ressecção parcial do fígado é a opção preferida, independente do tamanho da
lesão, desde que o tumor seja confinado ao fígado e tenha uma localização
anatômica que permita a completa excisão2.
O
controle da perda sangüínea é um problema crucial durante a hepatectomia,
notadamente nos pacientes testemunhas de Jeová, cuja religião não permite o uso
de sangue e seus derivados como terapia de reposição. Durante a cirurgia, pode
ser utilizada a modalidade de recuperação celular ("cell saver"), que
se trata de um processo automatizado, em que o sangue é colhido diretamente do
campo operatório, centrifugado, lavado, filtrado e reinfundido no doente. Um
sistema fechado é mantido durante todo o tempo, o que é aceito pelos pacientes
Testemunhas de Jeová. As células malignas não são completamente removidas do
sangue recuperado através da lavagem e filtração, e há o risco teórico de
resultar em metástases, caso a transfusão do sangue autólogo seja realizada
durante cirurgias para doenças malignas. No entanto, essa técnica tem sido
utilizada em alguns pacientes com carcinoma hepatocelular3, e é uma opção
nos pacientes desta religião. Além disso, o sangramento pode ser controlado no
intra-operatório utilizando técnicas de exclusão vascular hepática, como a
manobra de Pringle com clampeamento da veia cava inferior abaixo e acima do
fígado, associado ou não a bypass veno-venoso (da veia femoral para a veia
jugular interna) naqueles pacientes que não toleram o clampeamento da veia cava
inferior e se tornam hipotensos4. Todavia, a perda sangüínea média de uma
hepatectomia é de 900 a
1200ml.
Embora
a exclusão vascular hepática possa permitir um campo cirúrgico praticamente sem
sangue, o acesso cirúrgico e a exposição das estruturas são limitados em
pacientes com tumores hepáticos infiltrativos extensos. Essa dificuldade de
acesso pode comprometer as margens cirúrgicas e prejudicar a ressecção. Um
fator limitante adicional é a duração da isquemia normotérmica imposta pela
exclusão vascular hepática total quando ressecções extensas e complexas estão
planejadas. Essas limitações podem ser superadas utilizando a perfusão hepática
hipotérmica. Isso permite que a ressecção hepática seja realizada in situ,
antesitum ou ex vivo4.
A
cirurgia hepática ex-vivo, ex-situ surgiu como conseqüência da maior
experiência com ressecções e transplantes hepáticos, e do desenvolvimento de
técnicas hipotérmicas de preservação de órgãos. Essa alternativa cirúrgica
permite um melhor acesso para tumores de difícil localização e para ressecções
hepáticas extensas com reconstruções vasculares complexas, mas uma alta
mortalidade no pós-operatório precoce e uma alta taxa de recorrência tumoral a
longo prazo são observadas5. A combinação de ressecção e
reconstrução portal e da veia cava inferior apresenta ainda riscos inerentes às
anastomoses arterial e biliar4.
No
caso relatado o paciente apresentava uma massa tumoral de grande volume em lobo
hepático esquerdo, comprimindo a veia hepática média, e a hepatectomia ex-vivo,
exsitu foi realizada, sem a necessidade de reposição de hemoderivados. Trata-se
de uma técnica cirúrgica alternativa para a ressecção de tumores extensos, que
pode ser realizada com sucesso.
REFERÊNCIAS
1.
Cha CH, Ruo L, Fong Y, et al. Resection of hepatocellular carcinoma in
patients otherwise eligible for transplantation. Ann Surg. 2003; 238(3):315-21;
discussion 321-3.
2.
Wall WJ, Marotta PJ. Surgery and transplantation for hepatocellular cancer.
Liver Transpl. 2000; 6(Suppl 2):S16-22.
3.
Fujimoto J, Okamoto E, Yamanaka N, et al. Efficacy of autotransfusion in
hepatectomy for hepatocellular carcinoma. Arch Surg. 1993; 128(9):1065-9.
4.
Lodge JP, Ammori BJ, Prasad KR, et al. Ex vivo and in situ resection of
inferior vena cava with hepatectomy for colorectal metastases. Ann Surg. 2000;
231(4):471-9.
5.
Oldhafer KJ, Lang H, Schlitt HJ, et al. Long-term experience after ex
situ liver surgery. Surgery. 2000; 127(5):520-7.