terça-feira, 23 de julho de 2013

TAMPÃO SANGÜÍNEO PERIDURAL EM PACIENTES TESTEMUNHAS DE JEOVÁ. RELATO DE DOIS CASOS


Blog “Testemunhas de Jeová”, de autoria de Superdotado Álaze Gabriel.



Autoria:

1.                  Luciano de Andrade Silva, TSA. Co-intrutor do CET/SBA do Instituto Penido Burnier e Centro Médico de Campinas, SP;

2.                  Daniel de Carli, TSA. Anestesiologista do Hospital Paulo Sacramento de Jundiai; Professor Colaborador da Disciplina de Anestesiologia da Faculdade de Medicina de Jundiai, SP;

3.                  Luiz Marciano Cangiani, TSA. Co-responsável pelo CET/SBA, Chefe do Deptº de Anestesiologia do Centro Médico de Campinas;

4.                  José Bonifácio Mendes Gonçalves Filho. Anestesiologista do Hospital Paulo Sacramento de Jundiai, SP;

5.                  Iara Ferreira da Silva. ME2 do CET/SBA Instituto Penido Burnier e Centro Médico de Campinas, SP


 

RESUMO GERAL


1. JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS


Existem relatos do emprego do tampão sangüíneo peridural em pacientes Testemunhas de Jeová, utilizando-se um sistema fechado que permite a colheita do sangue e a injeção no espaço peridural, sem perda da continuidade. O objetivo deste relato é apresentar dois casos de pacientes Testemunhas de Jeová que apresentaram cefaléia após anestesia subaracnóidea e que foram tratados com tampão sangüíneo peridural com um sistema fechado de transfusão do sangue venoso para o espaço peridural. Os casos ocorreram em hospitais de duas cidades diferentes.


2. RELATO DOS CASOS


Um paciente do sexo masculino, com 21 anos, e uma paciente do sexo feminino, com 32 anos, apresentaram cefaléia pós-raquianestesia para cirurgia ambulatorial. Como os pacientes eram Testemunhas de Jeová, o tampão sangüíneo foi realizado com um sistema fechado. O sistema foi preparado em condições estéreis, utilizando-se os seguintes materiais: dois equipos de soro cortados em segmentos de 60 cm, uma conexão de duas vias, uma torneira de três vias e uma seringa de 20 ml. O sistema foi montado de modo a permitir uma conexão com a agulha da venopunção (20G), uma conexão à torneira de três vias, sendo que às outras duas vias foram conectados uma seringa de 20 ml e o outro segmento do equipo de soro, que seria conectado à agulha de peridural. Com os pacientes posicionados em decúbito lateral esquerdo foi feita a anti-sepsia da região lombar e do membro superior direito na região escolhida para a venopunção. Inicialmente foi feita punção peridural no espaço L2-L3, com agulha 17G, sendo que a mesma foi mantida fixa e o equipo de soro a ela conectado. A seguir foi feita venopunção com a agulha conectada à outra extremidade do equipo de soro com o direcionamento da torneira de três vias no sentido da veia para a seringa. Foram aspirados 15 ml de sangue. Com o redirecionamento da torneira no sentido da seringa para a agulha de peridural foram injetados os 15 ml de sangue.


3. CONCLUSÕES


Em pacientes Testemunhas de Jeová, refratários ao tratamento clínico, a injeção de sangue autólogo poderá ser feita com a técnica apresentada, após a devida informação ao paciente e o seu consentimento.


Unitermos: COMPLICAÇÕES: cefaléia; TERAPÊUTICA: tampão sangüíneo peridural; TRANSFUSÃO: testemunha de Jeová


INTRODUÇÃO


Com o advento das agulhas de fino calibre para anestesia subaracnóidea, diminuiu muito a incidência de cefaléia pós-punção da duramáter 1, permitindo inclusive que a técnica seja indicada para pacientes ambulatoriais 1,2. No entanto, a complicação ainda ocorre, podendo a mesma ser intensa e incapacitante. Nesses casos as medidas convencionais como repouso no leito, hidratação, administração de antiinflamatórios e analgésicos podem não apresentar resultados satisfatórios, fazendo com que a opção pelo tampão sangüíneo peridural seja cogitada 1. O método tem mostrado eficácia que, segundo alguns autores, pode chegar a 98% 1. Na literatura nacional, um estudo mostrou a eficácia do método em 60 parturientes que apresentaram cefaléia pós-raquianestesia (agulha 7 - 21G), cujo tratamento foi feito com tampão sangüíneo peridural (10 ml) com remissão dos sintomas em todas elas 3.

É sabido que os pacientes Testemunhas de Jeová, por princípios de interpretação bíblicas, não permitem nem a transfusão sangüínea autóloga, considerando que o sangue retirado do corpo não pode ser devolvido ao mesmo devido à perda da continuidade 4,5. No entanto, algumas medidas têm sido aceitas como autotransfusão (cell saver) e a hemodiluição normovolêmica aguda, desde que não haja desconexão do sangue retirado com o acesso venoso do paciente 4.

Existem relatos do emprego do tampão sangüíneo peridural em pacientes Testemunhas de Jeová, utilizando-se um sistema fechado que permite a colheita do sangue e a injeção no espaço peridural, sem perda da continuidade 6-8.

O objetivo deste relato é apresentar dois casos de pacientes Testemunhas de Jeová que apresentaram cefaléia após anestesia subaracnóidea e que foram tratados com tampão sangüíneo peridural com um sistema fechado de transfusão do sangue venoso para o espaço peridural. Os casos ocorreram em hospitais de duas cidades diferentes.


RELATO DOS CASOS


Caso 1 - Paciente Testemunha de Jeová, com 21 anos, do sexo masculino, estado físico ASA I, foi admitido no centro cirúrgico para exérese de cisto sacrococcígeo, em regime ambulatorial. Após venóclise com cateter 20 G, foi feita sedação com fentanil e midazolam, por via venosa, o paciente foi posicionado em decúbito lateral esquerdo para punção subaracnóidea que foi realizada no espaço L2-L3, com punção única, com agulha 27G, sem intercorrências. O anestésico utilizado foi bupivacaína a 0,5% (15 mg) hiperbárica. A cirurgia transcorreu sem intercorrências.

Quarenta e oito horas após o procedimento anestésico-cirúrgico, o paciente procurou o Serviço de Anestesiologia com queixa de cefaléia há 24 horas. A dor era de forte intensidade, incapacitante, localizava-se nas regiões occipital e frontal, intensificando-se na posição ortostática. Em decúbito dorsal ocorria alívio parcial da dor. Estava em uso de dipirona, por via oral, sem melhora dos sintomas. Não apresentava queixas associadas.

Foi feito o diagnóstico de cefaléia pós-punção da duramáter e foi proposta internação e tratamento com repouso no leito, analgésico (dipirona), antiinflamatório (cetoprofeno), hidratação por via venosa e injeção peridural de solução fisiológica (40 ml), que foi realizada no espaço L2-L3 com agulha 17G. No entanto, 24 horas após, a cefaléia continuou intensa com o paciente em posição ortostática. Assim sendo, foi proposto e explicado ao paciente que a injeção de sangue no espaço peridural poderia ser feita com um sistema fechado, sem haver perda da continuidade entre a aspiração do sangue venoso e a injeção no espaço peridural. Nessas condições, o paciente e seu acompanhante autorizaram a realização do tampão sangüíneo.

O sistema foi preparado em condições estéreis, utilizando-se os seguintes materiais: dois equipos de soro cortados em segmentos de 60 cm, uma conexão de duas vias, uma torneira de três vias e uma seringa de 20 ml. O sistema foi montado de modo a permitir uma conexão com a agulha da venopunção (20G), uma conexão à torneira de três vias, sendo que às outras duas vias foram conectados uma seringa de 20 ml e o outro segmento do equipo de soro, que seria conectado à agulha de peridural.

Após monitorização com cardioscópio, oxímetro de pulso e aparelho para medida da pressão arterial pelo método não invasivo, o paciente foi posicionado em decúbito lateral esquerdo e foi feita a anti-sepsia da região lombar e do membro superior direito na região escolhida para a venopunção .

Inicialmente foi feita punção peridural no espaço L2-L3, por via mediana, com agulha 17G, após infiltração local com lidocaína a 2%.

Após identificado o espaço peridural, pela técnica da perda da resistência à injeção de ar, a agulha foi mantida fixa e o equipo de soro foi a ela conectado. A seguir foi feita venopunção com a agulha conectada à outra extremidade do equipo de soro com o direcionamento da torneira de três vias no sentido da veia para a seringa. Foram aspirados 15 ml de sangue. Com o redirecionamento da torneira no sentido da seringa para a agulha de peridural foram injetados os 15 ml de sangue. A seguir foram retirados o sistema utilizado e a agulha de peridural. A venóclise foi mantida com solução de Ringer com lactato (500 ml). O paciente permaneceu em repouso por 4 horas e, após deambular sem queixa de cefaléia, recebeu alta com a recomendação para que procurasse o Serviço de Anestesiologia se houvesse recidiva do quadro clínico.


Caso 2 - Paciente do sexo feminino, 32 anos, 1,63 m, 60 kg, estado físico ASA I, Testemunha de Jeová, foi submetida a tratamento cirúrgico de varizes bilateral sob anestesia subaracnóidea com bupivacaína a 0,5% (15 mg) hiperbárica cuja punção foi realizada por via mediana, no espaço L3-L4, com a paciente sentada, utilizando-se agulha 27G de Quincke, sem intercorrências. Recebeu alta hospitalar 8 horas após o término da cirurgia sem queixas.

Após 24 horas a paciente começou a apresentar cefaléia fronto-occiptal contínua, incapacitante, de forte intensidade ao sentar-se ou levantar-se, tendo como fator de melhora a posição supina, sem outras queixas associadas como náuseas, vômitos ou distúrbios auditivos ou visuais. Procurou o Serviço de Anestesiologia e ao exame físico não apresentava sinais de irritação meníngea, sendo diagnosticada cefaléia pós-punção da duramáter. Optou-se pelo tratamento clínico sendo administrados 1000 ml de solução de Ringer com lactato, cetoprofeno (100 mg) e dipirona sódica (2 g) todos por via venosa. A paciente permaneceu em repouso no leito e foi orientada para ingerir bastante líquido. Foi prescrita dipirona sódica (500 mg) por via oral cada 6 horas. O tratamento foi repetido no dia seguinte (48 horas) e como não houve melhora da cefaléia, optou-se pela realização do tampão sangüíneo peridural com sangue autólogo.

Ao ser informada sobre o tratamento, a paciente optou por consultar sua liderança religiosa que, após a explicação da equipe médica, consentiu na realização do procedimento. Após autorização da paciente para o procedimento, para documentação fotográfica e para publicação do caso, foi obtida autorização da Comissão de Ética Médica.

Antes da realização do tampão sangüíneo, foi preparado um material para que houvesse a retirada do sangue venoso do membro superior esquerdo e sua infusão no espaço peridural sem que houvesse perda da continuidade. O sistema é semelhante ao utilizado no caso nº 1, sendo que o mesmo foi preenchido com solução fisiológica (6 ml).

No centro cirúrgico, após monitorização com eletrocardioscópio e oximetria de pulso, realizou-se assepsia da região lombar e do membro superior esquerdo (após garroteamento e localização do acesso venoso). Após infiltração local com lidocaína a 2%, procedeu-se à punção peridural em L3-L4 por via mediana com agulha 17G descartável de Weiss, sem intercorrências, seguida de punção venosa com cateter sobre agulha 20G e conexão do sistema já descrito ao cateter venoso e à agulha peridural. Ocluindo-se a via da agulha peridural através da movimentação da torneira de conexão de 3 vias, obteve-se a aspiração do sangue do cateter venoso para a seringa num total de 20 ml, quando se ocluiu a via do cateter venoso. Posteriormente, abriu-se a via da agulha peridural, o conteúdo da seringa foi injetado no espaço peridural. Após a retirada da agulha de peridural e do sistema utilizado, o acesso venoso foi mantido com solução de Ringer com lactato (1000 ml) adicionada de cetoprofeno (100 mg) e dipirona sódica (2 g).

A paciente permaneceu em repouso por 2 horas e, após deambular sem queixas de cefaléia, recebeu alta hospitalar, com recomendações para retornar ao hospital caso ocorresse recidiva do quadro clínico.


DISCUSSÃO


Os dois casos apresentados mostraram que é possível realizar o tampão sangüíneo peridural em pacientes Testemunha de Jeová, desde que o sistema utilizado permita continuidade entre a venopunção, a colheita e a injeção peridural.

A realização do tampão sangüíneo peridural foi sugerida aos pacientes, baseada em publicações em que os autores utilizaram sistema fechado para injeção de sangue autólogo no espaço peridural e foram bem aceitas pelos pacientes 6,7. Entretanto, é fato comum que sua realização só é permitida após detalhada explicação e consulta do paciente a uma liderança religiosa. Assim, é necessário obter autorização formal para a realização do procedimento. Entendemos que a indicação da anestesia subaracnóidea em pacientes Testemunha de Jeová, especialmente em regime ambulatorial, deve ser muito criteriosa. Quando a anestesia subaracnóidea estiver indicada, na visita pré-anestésica deve-se antever dificuldades da aceitação do paciente, para uma possível indicação de tampão sangüíneo peridural em decorrência de uma cefaléia incapacitante, que não melhore com o tratamento convencional.

É necessário ressaltar que a continuidade do sistema é o ponto ético fundamental. Assim sendo, se houver alguma desconexão acidental, o procedimento deve ser reiniciado com equipamento novo.

Os sistemas utilizados nos dois casos foram semelhantes. A única diferença é que no caso 2 o equipo de soro foi preenchido com 6 ml de solução fisiológica, que diluiu o sangue injetado sem entretanto influenciar no resultado.

No caso 1 foi observado um período de repouso de 4 horas após a realização do tampão sangüíneo peridural. A conduta foi baseada numa publicação em que os autores conseguiram 100% de sucesso em 60 casos consecutivos, de gestantes que apresentaram cefaléia pós-raquianestesia, tratadas com tampão sangüíneo peridural e que permaneceram 4 horas em repouso 3. No entanto, no caso 2 o fato de observar repouso de apenas 2 horas não influenciou o resultado. A evolução também foi muito boa com remissão da cefaléia.

Quando há ocorrência de cefaléia, é importante seguir os passos do tratamento, utilizando todos os meios terapêuticos disponíveis, deixando o tampão sangüíneo peridural para os casos refratários.


REFERÊNCIAS


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BELZARENA SD - Bloqueio Subaracnóideo, em: Cangiani LM - Anestesia Ambulatorial, São Paulo, Atheneu, 2001;231-248.

PEDROSA GC; JARDIM, J. L ; PALMEIRA, M.A.. Tampão sangüíneo peridural e alta hospitalar precoce: análise de 60 pacientes portadores de cefaléia pós-raquianestesia. Rev Bras Anestesiol, 1996;46:8-12.

VALE NB, Delfino J.. As nove premissas anestesiológicas da Bíblia. Rev Bras Anestesiol, 2003;53:127-136.

BENSON, K. T.. The Jehova´s Witness patient: considerations for the anesthesiologist. Anesth Analg, 1989;69:647-656.

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