sábado, 29 de junho de 2013

TESTEMUNHAS DE JEOVÁ E A QUESTÃO DO SANGUE

Blog “Testemunhas de Jeová”, de autoria de Superdotado Álaze Gabriel.

O SANGUE É VITAL PARA A VIDA

 

Como pode o sangue salvar a sua vida? Isto, sem dúvida, lhe interessa, pois o sangue está vinculado à sua vida. O sangue transporta oxigênio pelo seu corpo, remove o gás carbônico, ajuda-o a adaptar-se às mudanças de temperatura, e auxilia-o a combater as doenças.

A vinculação da vida ao sangue foi feita muito antes de William Harvey ter mapeado o sistema circulatório, em 1628. A ética básica das principais religiões se focaliza num Dador da Vida, que se expressou sobre a vida e sobre o sangue. Um advogado judeu-cristão disse a respeito dele: “Ele mesmo dá a todos vida, e fôlego, e todas as coisas. Pois, por meio dele temos vida, e nos movemos, e existimos.”*

As pessoas que acreditam em tal Dador da Vida confiam que suas orientações são para nosso bem duradouro. Um profeta hebreu descreveu-o como “Aquele que te ensina a tirar proveito, Aquele que te faz pisar no caminho em que deves andar”.

Essa garantia, dada em Isaías 48:17, faz parte da Bíblia, livro respeitado por valores éticos que podem trazer benefícios a todos nós. O que diz ela a respeito da utilização humana do sangue? Será que mostra como vidas podem ser salvas pelo sangue? Na realidade, a Bíblia mostra claramente que o sangue é mais do que um complexo líquido biológico. Ela menciona o sangue mais de 400 vezes, e algumas destas referências envolvem a salvação de vidas.

Em uma das primeiras referências ao sangue, o Criador declarou: “Tudo que vive e se move vos servirá de comida.…Contudo não deveis comer carne com vida, isto é, com sangue.” Ele acrescentou: “Pedirei contas de vosso sangue que é vossa vida”, e então condenou o homicídio. (Gênesis 9:3-6, Bíblia Vozes) Ele disse isso a Noé, um ancestral comum e altamente estimado pelos judeus, pelos muçulmanos e pelos cristãos. Toda a humanidade foi assim avisada de que, no conceito do Criador, o sangue representa a vida. Tratava-se de mais do que uma regra dietética. É evidente que estava envolvido um princípio moral. O sangue humano tem grande significado e não deve ser mal empregado. O Criador, mais tarde, acrescentou pormenores, por meio dos quais podemos facilmente depreender as questões morais que ele vincula ao sangue vital.

“Os preceitos aqui delineados de modo preciso e metódico [em Atos 15] são qualificados como indispensáveis, fornecendo a prova mais forte de que, na mente dos apóstolos, este não era um arranjo temporário, ou uma medida provisória.” — Professor Édouard Reuss, Universidade de Estrasburgo, França.

Ele novamente se referiu ao sangue ao dar a Israel o código da Lei. Ao passo que muitos respeitam a sabedoria e a ética daquele código, poucos estão cônscios de suas sérias leis sobre o sangue. Por exemplo: “Se alguém da casa de Israel, ou dos estrangeiros que residirem entre eles, tomar qualquer sangue, eu porei a Minha face contra a pessoa que toma o sangue, e a cortarei de entre seus parentes. Pois a vida da carne está no sangue.” (Levítico 17:10, 11, versão judaica Tanakh) Deus então explicou o que um caçador devia fazer com um animal morto: “Ele deve derramar o seu sangue e cobri-lo de terra.…Não deveis tomar o sangue de carne alguma, pois a vida de toda carne é o seu sangue. Qualquer pessoa que tomar dele será cortada.” — Levítico 17:13, 14, Ta.

Os cientistas sabem agora que o código da Lei judaica promovia a boa saúde. Ele exigia, para exemplificar, que os excrementos fossem colocados fora do acampamento e cobertos, e que as pessoas não comessem carne que contivesse alto risco de doenças. (Levítico 11:4-8, 13; 17:15; Deuteronômio 23:12, 13) Ao passo que a lei sobre o sangue tinha aspectos relativos à saúde, havia muito mais envolvido. O sangue tinha um significado simbólico. Representava a vida concedida pelo Criador. As pessoas, ao tratarem o sangue como algo especial, demonstravam que dependiam Dele para viver. Sim, o motivo principal pelo qual elas não deveriam tomar sangue era, não que o sangue era ruim para a saúde, mas que o sangue tinha um significado especial para Deus. Num concílio histórico, o corpo governante cristão confirmou que a lei de Deus sobre o sangue ainda é obrigatória.

A Lei repetidas vezes declarava a proscrição do Criador a se tomar sangue para sustentar a vida. “Não o deves comer [i.e., o sangue]. Derrama-o na terra, como água. Não o comas, para seres feliz com teus filhos, fazendo o que é reto.” — Deuteronômio 12:23-25, Bíblia Vozes; 15:23; Levítico 7:26, 27; Ezequiel 33:25.#

Contrário ao raciocínio de alguns hoje, a lei de Deus sobre o sangue não deveria ser desconsiderada numa emergência. Alguns soldados israelitas, em certa crise de tempo de guerra, mataram animais e ‘foram comê-los junto com o sangue’. Tratando-se duma emergência, era-lhes permissível sustentar a vida com sangue? Não. Seu comandante indicou-lhes que seu proceder ainda constituía um grave erro. (1 Samuel 14:31-35) Assim sendo, por mais preciosa que seja a vida, nosso Dador da Vida jamais disse que suas normas poderiam ser desconsideradas em caso de emergência. 

 

O SANGUE E OS VERDADEIROS CRISTÃOS 

 

Qual a posição do cristianismo sobre a questão de se salvar a vida humana com sangue?

Jesus era um homem íntegro, razão pela qual ele goza de tão elevado respeito. Ele sabia que o Criador tinha dito que consumir sangue era errado e que esta lei estava vigorando. Assim, existe boa razão para se crer que Jesus apoiaria a lei sobre o sangue, mesmo que ficasse sob pressão para agir de outra forma. Jesus “não cometeu nenhum pecado; [e] mentira nenhuma foi achada em sua boca”. (1 Pedro 2:22, A Bíblia de Jerusalém) Ele estabeleceu o padrão para seus seguidores, inclusive o padrão de respeito pela vida e pelo sangue. (Mais tarde consideraremos como o próprio sangue de Jesus acha-se envolvido nesta questão vital que influi em sua vida.)

Martinho Lutero indicou as implicações do decreto apostólico: “Daí, se quisermos ter uma igreja que se ajuste a este concílio,…temos de ensinar e insistir que, doravante, nenhum príncipe, senhor, burguês, ou campônio, coma ganso, corça, veado, ou leitão cozinhado em sangue…E burgueses e campônios têm de abster-se especialmente da morcela e do chouriço com sangue.”

Observe o que aconteceu quando, anos depois da morte de Jesus, surgiu uma questão a respeito de se quem se tornasse cristão tinha de guardar todas as leis de Israel. Isto foi discutido num concílio do corpo governante cristão, que incluía os apóstolos. Tiago, meio-irmão de Jesus, referiu-se aos escritos que continham as ordens sobre o sangue, declaradas a Noé e à nação de Israel. Seriam elas obrigatórias para os cristãos? — Atos 15:1-21.

Aquele concílio enviou sua decisão a todas as congregações: Os cristãos não precisavam guardar o código dado a Moisés, mas era ‘necessário’ que eles ‘persistissem em abster-se de coisas sacrificadas a ídolos, e de sangue, e de coisas estranguladas [carne não-sangrada], e de fornicação’. (Atos 15:22-29) Os apóstolos não estavam apresentando um mero ritual ou um regulamento dietético. O decreto estabelecia normas éticas fundamentais, que os cristãos primitivos acataram. Cerca de uma década depois, eles reconheceram que ainda deveriam ‘guardar-se do que é sacrificado a ídolos, bem como de sangue e da fornicação’. — Atos 21:25.

O leitor sabe que milhões de pessoas freqüentam as igrejas. A maioria delas provavelmente concordaria que a ética cristã envolve não adorar ídolos, nem participar em crassa imoralidade. No entanto, vale a pena notarmos que os apóstolos situaram o evitar o sangue no mesmo elevado nível moral que o evitar tais erros. O decreto deles rezava: “Se vos guardardes cuidadosamente destas coisas, prosperareis. Boa saúde para vós!” — Atos 15:29.

Há muito se entende que o decreto apostólico é obrigatório. Eusébio fala de uma mulher jovem de perto do fim do segundo século que, antes de morrer sob tortura, frisou o ponto de que aos cristãos “não se lhes permite comer o sangue sequer de animais irracionais”. Ela não estava exercendo o direito de morrer. Ela queria viver, mas não se dispunha a transigir quanto a seus princípios. Não sente respeito por aqueles que colocam os princípios acima de seu ganho pessoal?

O cientista Joseph Priestley concluiu: “A proibição de comer sangue, dada a Noé, parece ser obrigatória para toda a posteridade dele…Se interpretarmos [esta] proibição dos apóstolos pela prática dos primitivos cristãos, dos quais dificilmente se pode supor não terem entendido corretamente a natureza e o alcance dela, não podemos senão concluir que se intencionava ser absoluta e perpétua; pois o sangue não era comido por nenhum cristão, durante muitos séculos.” 

 

QUE DIZER DO USO MEDICINAL DO SANGUE? 

 

Abrangeria a proibição bíblica sobre o sangue o seu emprego na medicina, tal como em transfusões, que por certo não eram conhecidas nos dias de Noé, de Moisés ou dos apóstolos?

Ao passo que a terapia moderna que emprega o sangue não existia lá naquele tempo, o uso medicinal do sangue não é moderno. Por cerca de 2.000 anos, no Egito e em outras partes, o “sangue [humano] era considerado como o remédio eficaz para a lepra”. Um médico revelou a terapia ministrada ao filho do Rei Esar-Hadom quando a Assíria estava no auge da tecnologia: “[O príncipe] está passando bem melhor; o rei, meu senhor, pode ficar feliz. A partir do 22.° dia eu dou (a ele) sangue para beber, ele beberá (isso) por 3 dias. Durante outros 3 dias, eu darei (a ele sangue) para aplicação interna.” Esar-Hadom tinha contatos com os israelitas. Todavia, por terem os israelitas a Lei de Deus, eles jamais beberiam sangue como remédio.

Era o sangue usado como remédio nos tempos de Roma? O naturalista Plínio (contemporâneo dos apóstolos) e o médico Areteu, do segundo século, relatam que o sangue humano era um dos tratamentos da epilepsia. Tertuliano escreveu posteriormente: “Considerai aqueles que, com sede cobiçosa, num espetáculo da arena, pegam sangue fresco de criminosos iníquos…e o levam correndo para curar sua epilepsia.” Ele os contrastou com os cristãos, que ‘nem mesmo tinham o sangue dos animais em suas refeições…Nos julgamentos dos cristãos, oferecei-lhes chouriços cheios de sangue. Estais convictos, naturalmente, de que [isso]…lhes é ilícito’. Assim, os cristãos primitivos preferiam correr o risco de morrer a tomar sangue.

“O sangue, em sua forma mais cotidiana não…saiu de moda como ingrediente da medicina e da magia”, relata o livro Flesh and Blood (Carne e Sangue). “Em 1483, por exemplo, Luís XI, da França, estava morrendo. ‘Ele piorava a cada dia, e os remédios de nada lhe adiantavam, embora fossem dum caráter estranho; pois ele esperava veementemente recuperar-se com o sangue humano que ele tirava e engolia de certas crianças.’”

“Deus e os homens encaram as coisas numa luz bem diferente. O que parece importante aos nossos olhos não tem, muitas vezes, nenhum valor nos cálculos da infinita sabedoria; e o que parece trivial para nós é, não raro, de imensa importância para Deus. Isso já é assim desde o princípio.” — An Enquiry Into the Lawfulness of Eating Blood (Indagação Sobre a Licitude de se Comer Sangue), de Alexander Pirie, 1787.

Que dizer de transfundir sangue? Experimentos com isto começaram no início do século 16. Thomas Bartholin (1616-80), professor de anatomia na Universidade de Copenhague, Dinamarca, protestou: ‘Os que introduzem o uso de sangue humano como remédio de uso interno para doenças parecem estar abusando dele e pecando gravemente. Os canibais são condenados. Então, por que não abominamos os que mancham sua goela com sangue humano? Algo similar é receber duma veia cortada sangue estranho, quer por via oral, quer por meio de transfusão. Os autores desta operação ficam sujeitos ao terror pela lei divina, pela qual se proíbe comer sangue.’

Assim sendo, algumas pessoas refletivas dos séculos passados discerniram que a lei bíblica se aplicava ao tomar sangue nas veias, assim como se aplicava ao tomá-lo por via oral. Bartholin concluiu: “Ambas as formas de se tomar [sangue] visam um só e único propósito, o de que, por meio deste sangue, um corpo enfermo possa ser nutrido ou restaurado [à saúde].”

Esta visão geral talvez possa ajudá-lo a entender a posição religiosa definitiva das Testemunhas de Jeová. Elas dão alto valor à vida e procuram bons tratamentos médicos. Mas estão decididas a não violar a norma de Deus, que tem sido coerente: Aqueles que respeitam a vida como dádiva do Criador não tentam sustentar a vida por tomarem sangue.

Ainda assim, durante anos, ouviram-se muitas afirmações de que o sangue salva vidas. Os médicos podem relatar casos em que alguém sofreu perda aguda de sangue, mas recebeu transfusões de sangue e então melhorou rapidamente. Assim, o leitor talvez fique imaginando: ‘Quão sábio ou tolo, em sentido médico, é isto?’ Oferecem-se evidências médicas em apoio à hemoterapia (terapia com sangue). De modo que o leitor tem, para consigo mesmo, o dever de apurar os fatos, a fim de fazer uma decisão conscientizada a respeito do sangue.

 

O QUE A BÍBLIA DIZ SOBRE TRANSFUSÕES DE SANGUE?

 

A Bíblia nos proíbe de tomar sangue por qualquer via. Assim, não devemos aceitar sangue total ou seus componentes primários, quer como alimento, quer numa transfusão. Veja os textos a seguir:

·       Gênesis 9:4. Embora tivesse permitido que Noé e sua família passassem a se alimentar de carne animal após o Dilúvio, Deus os proibiu de comer o sangue. Ele disse a Noé: “Somente a carne com a sua alma — seu sangue — não deveis comer.” Desde então, isso se aplica a todos os humanos, porque todos são descendentes de Noé.

·       Levítico 17:14. Não deveis comer o sangue de qualquer tipo de carne, porque a alma de todo tipo de carne é seu sangue. Quem o comer será decepado da vida.” Para Deus, a alma, ou vida, está no sangue e pertence a Ele. Embora essa lei tenha sido dada apenas à nação de Israel, ela mostra a importância que Deus dava a não comer sangue.

 ·       Atos 15:20. Abstenham-se do sangue.’ Deus deu aos cristãos a mesma proibição que deu a Noé. A História mostra que os primeiros cristãos não consumiam sangue, nem mesmo para fins medicinais.

 

POR QUE DEUS NOS MANDA NOS ABSTER DO SANGUE?

 

Há bons motivos médicos para evitarmos transfusões de sangue. No entanto, o mais importante é que Deus nos manda nos abster do sangue porque ele representa a vida, que é algo sagrado para Deus. — Levítico 17:11; Colossenses 1:20.

 

Alguns conceitos equivocados

 

Mito: As Testemunhas de Jeová não usam remédios nem aceitam tratamentos médicos.

Fato: Nós procuramos para nós e nossa família o melhor tratamento médico possível. Quando ficamos doentes, consultamos médicos com experiência em realizar tratamentos e cirurgias sem sangue. Reconhecemos os avanços que foram feitos no campo da medicina. De fato, os tratamentos sem sangue desenvolvidos para ajudar pacientes Testemunhas de Jeová agora são usados para beneficiar outros pacientes. Em muitos países, qualquer paciente pode escolher evitar os riscos decorrentes de transfusões, como doenças transmitidas pelo sangue, reações do sistema imunológico e erro humano.

 

Mito: As Testemunhas de Jeová acreditam que a fé pode curar doenças.

Fato: Nós não realizamos curas pela fé.

 

Mito: Evitar transfusões de sangue é muito caro.

Fato: Os tratamentos médicos sem sangue são economicamente viáveis. *

 

Mito: Muitas Testemunhas de Jeová, incluindo crianças, morrem todo ano por não aceitarem transfusão de sangue.

Fato: Essa afirmação não tem nenhuma base. É comum cirurgiões realizarem procedimentos complexos, como operações cardíacas, cirurgias ortopédicas e transplantes de órgãos, sem o uso de transfusões de sangue. * Os pacientes, incluindo crianças, que não recebem transfusão geralmente se recuperam tão bem quanto, ou até melhor, do que aqueles que aceitam transfusão. * De qualquer modo, ninguém pode dizer com certeza que um paciente vai morrer se recusar uma transfusão ou que vai sobreviver se aceitá-la.

 

POR QUE AS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ NÃO ACEITAM TRANSFUSÃO DE SANGUE?

 

Isso é mais uma questão religiosa do que médica. Tanto o Velho como o Novo Testamento claramente nos ordenam a nos abster de sangue. (Gênesis 9:4; Levítico 17:10; Deuteronômio 12:23; Atos 15:28, 29) Além disso, para Deus, o sangue representa a vida. (Levítico 17:14) Então, nós evitamos tomar sangue por qualquer via não só em obediência a Deus, mas também por respeito a ele como Dador da vida.

 

OS CONCEITOS ESTÃO MUDANDO

 

Cirurgias complexas podem ser realizadas com êxito sem o uso de transfusões de sangue

No passado, a comunidade médica costumava encarar as opções terapêuticas a transfusões de sangue como extremistas, ou até mesmo suicidas. Mas isso tem mudado nos últimos anos. Por exemplo, em 2004, um artigo publicado numa revista médica declarou que “muitas das técnicas desenvolvidas para pacientes Testemunhas de Jeová em breve se tornarão procedimentos-padrão”. * Um artigo na revista Heart, Lung and Circulation disse em 2010 que “a cirurgia sem sangue não deveria se limitar apenas às Testemunhas de Jeová, mas fazer parte integral da prática cirúrgica básica”.

Milhares de médicos em todo o mundo usam técnicas de conservação de sangue para realizar cirurgias complexas sem transfusão. Essas opções terapêuticas são usadas até mesmo em países em desenvolvimento e são solicitadas por muitos pacientes que não são Testemunhas de Jeová.

  

SANGUE: QUEM DECIDE? BASEADO NA CONSCIÊNCIA DE QUEM?[1]

de J. Lowell Dixon, M.D. (Doutor em Medicina)

 

OS MÉDICOS comprometem-se a aplicar seu conhecimento, suas habilidades e sua experiência no combate à doença e à morte. Todavia, que fazer quando um paciente recusa o tratamento recomendado? Isto provavelmente ocorrerá se o paciente for Testemunha de Jeová e o tratamento for sangue integral, papa de hemácias, plasma ou plaquetas.

Quando se trata de administrar sangue, o médico talvez julgue que, quando o paciente escolhe um tratamento sem sangue, isto deixa a dedicada equipe médica com as mãos atadas. Mesmo assim, não devemos esquecer que outros pacientes, que não são Testemunhas de Jeová, muitas vezes resolvem não seguir as recomendações de seu médico. Segundo Appelbaum e Roth,1 19% dos pacientes dos hospitais-escola recusaram pelo menos um tratamento, ou procedimento médico, embora 15% de tais recusas “colocassem potencialmente em risco a vida”.

O conceito geral de que “o médico é quem sabe” faz com que a maioria dos pacientes submeta-se à perícia e à experiência de seu médico. Mas quão sutilmente perigoso seria o médico proceder como se esta frase fosse um fato científico, e ele tratasse os pacientes de acordo com isso. Na verdade, nossa formação médica, nossa licença de clinicar, e nossa experiência nos dão notáveis privilégios na área médica. Nossos pacientes, porém, têm direitos. E, como estamos provavelmente cônscios, a lei (até mesmo a Constituição) dá maior peso aos direitos.

Nas paredes da maioria dos hospitais [dos EUA], vê-se a “Carta dos Direitos do Paciente”. Um destes direitos é o consentimento conscientizado, que poderia ser mais exatamente chamado de escolha conscientizada. Depois de o paciente ser informado dos resultados potenciais de diversos tratamentos (ou de não se tratar), cabe-lhe decidir a que se submeterá. No Hospital Albert Einstein, no Bronx, Nova Iorque, EUA, declarava uma diretriz formulada quanto a transfusões de sangue e as Testemunhas de Jeová: “Qualquer paciente adulto que não seja declarado incapaz tem o direito de recusar o tratamento, não importa quão prejudicial tal recusa possa ser para sua saúde.” 2

Ao passo que os médicos podem expressar preocupações quanto à ética ou a responsabilidade judicial, os tribunais têm destacado a supremacia da escolha do paciente. 3 O Tribunal de Recursos de Nova Iorque declarou que “o direito do paciente de determinar o curso de seu próprio tratamento [é] supremo…Não se pode declarar que [um] médico violou suas responsabilidades legais ou profissionais quando ele honra o direito de um paciente adulto competente de rejeitar o tratamento médico”. 4 Esse tribunal também comentou que “a integridade ética da classe médica, ao passo que é importante, não pode sobrepor-se aos direitos individuais fundamentais aqui garantidos. São as necessidades e os desejos do indivíduo, e não os requisitos da instituição, que são supremos”.5

Quando a Testemunha recusa tomar sangue, os médicos talvez sintam dores de consciência diante da perspectiva de fazerem algo que não lhes parece o máximo. O que a Testemunha solicita aos médicos conscienciosos, porém, é proverem-lhe os melhores cuidados alternativos, sob tais circunstâncias. Muitas vezes temos de modificar nossa terapia para ajustar-nos às circunstâncias, tais como a hipertensão, uma grave alergia a antibióticos, ou a indisponibilidade de certos equipamentos caros. Quanto ao paciente que é Testemunha, pede-se aos médicos que cuidem do problema clínico ou cirúrgico em harmonia com a decisão e a consciência do paciente, com a decisão moral/religiosa dele de abster-se de sangue.

Inúmeros relatórios de grandes operações feitas em pacientes que são Testemunhas mostram que muitos médicos podem, em boa consciência e com êxito, ajustar-se à solicitação de que não se use sangue. Por exemplo, em 1981, Cooley analisou 1.026 operações cardiovasculares, 22% delas feitas em menores de idade. Ele decidiu “que o risco da cirurgia em pacientes do grupo das Testemunhas de Jeová não tem sido significativamente maior do que no caso de outros”. 6 Kambouris 7 fez uma comunicação sobre grandes operações em Testemunhas, a algumas das quais se havia “negado tratamento cirúrgico urgentemente necessitado, devido à sua recusa em aceitar sangue”. Disse ele: “Todos os pacientes obtiveram garantias antes do tratamento de que suas crenças religiosas seriam respeitadas, não importando as circunstâncias da sala de cirurgia. Esta diretriz não produziu resultados desfavoráveis.”

Quando o paciente é Testemunha de Jeová, além da questão de decisão, entra em cena a consciência. Não se pode pensar apenas na consciência do médico. Que dizer da do paciente? As Testemunhas de Jeová encaram a vida como uma dádiva de Deus, representada pelo sangue. Elas crêem no mandamento da Bíblia, de que os cristãos têm de ‘abster-se de sangue’ (Atos 15:28, 29). 8 Assim sendo, caso um médico violasse paternalisticamente tais convicções religiosas profundas, e bem antigas, do paciente, o resultado poderia ser trágico. O Papa João Paulo II tem comentado que obrigar alguém a violar sua consciência “é o golpe mais doloroso infligido à dignidade humana. Em certo sentido, é pior do que infligir a morte física, ou matar”.9

Ao passo que as Testemunhas de Jeová recusam o sangue por motivos religiosos, cada vez maior número de pacientes que não são Testemunhas decidem evitar tomar sangue, devido a riscos tais como o da AIDS, da hepatite não-A e não-B, e das reações imunológicas. Podemos apresentar-lhes nossos conceitos quanto a se tais riscos parecem pequenos, em comparação com os benefícios. Mas, como indica a Associação Médica Americana, o paciente “é o árbitro final quanto a se correrá os riscos envolvidos no tratamento ou na operação recomendados pelo médico, ou se arriscará a viver sem isso. Este é o direito natural do indivíduo, que a lei reconhece”.10

Relacionado com isto, Macklin11 suscitou a questão dos riscos e benefícios relativos à Testemunha “que corria o risco de sangrar até morrer, sem receber uma transfusão”. Um estudante de medicina disse: “Seus processos mentais estavam intatos. Que fazer quando as crenças religiosas são contrárias à única fonte de tratamento?” Macklin arrazoou: “Talvez acreditemos muito firmemente que tal homem está cometendo um erro. Mas as Testemunhas de Jeová crêem que receber uma transfusão… [pode] resultar na condenação eterna. Fomos treinados a fazer análises de riscos-benefícios na medicina, mas, se pesar a condenação eterna contra a vida restante na Terra, tal análise assume um ângulo diferente.”11

Vercillo e Duprey,12 nesta edição do Journal, referem-se a In re Osborne para sublinhar o interesse em se garantir a segurança dos dependentes, mas como foi decidido aquele processo? Dizia respeito a um gravemente ferido pai de dois filhos menores. O tribunal decidiu que, se ele morresse, os parentes cuidariam material e espiritualmente dos filhos dele. Assim, como em outros processos recentes,13 o tribunal não encontrou nenhum interesse obrigatório do Estado que justificasse o sobrepor-se à escolha de tratamento do paciente; era injustificada a intervenção judicial para autorizar um tratamento profundamente objetável para ele.14 Com um tratamento alternativo, o paciente recuperou-se e continuou a cuidar de sua família.

Não é verdade que a ampla maioria de casos que os médicos têm confrontado, ou provavelmente irão confrontar, podem ser cuidados sem sangue? O que estudamos, e conhecemos bem, tem que ver com os problemas de saúde, todavia, os pacientes são seres humanos cujos valores e alvos individuais não podem ser ignorados. Eles sabem melhor quais são suas próprias prioridades, sua própria moral e consciência, o que dá significado à sua vida.

Respeitar a consciência religiosa dos pacientes que são Testemunhas talvez seja um desafio à nossa perícia. Mas, ao enfrentarmos este desafio, sublinhamos valiosas liberdades mui prezadas por todos nós. Como John Stuart Mill escreveu apropriadamente: “Não é livre nenhuma sociedade em que tais liberdades não são, como um todo, respeitadas, seja qual for a sua forma de governo… Cada qual é o guardião correto de sua própria saúde, seja ela física, seja mental, seja espiritual. A humanidade é que mais lucra ao permitir que cada um viva como bem lhe parecer, em vez de compelir cada pessoa a viver como parece ser bom para os demais.”15

 

TESTEMUNHAS DE JEOVÁ O DESAFIO CIRÚRGICO/ÉTICO[2]

 

Os médicos enfrentam um desafio incomum ao tratarem as Testemunhas de Jeová. Os membros desta crença têm profundas convicções religiosas contra aceitarem sangue total, homólogo ou autólogo, papas de hemácias [glóbulos vermelhos], concentrados de leucócitos [glóbulos brancos], ou de plaquetas. Muitos consentirão no uso do equipamento de coração-pulmão (sem o emprego de sangue como volume de escorva), de diálise, ou de outro similar, se a circulação extracorpórea for ininterrupta. A equipe médica não precisa preocupar-se de ser legalmente responsabilizada, pois as Testemunhas de Jeová tomarão as providências legais adequadas para eximi-la da responsabilidade no tocante à sua recusa conscientizada de sangue. Aceitam expansores do volume do plasma que não contenham sangue. Por empregarem estes, e por outras técnicas meticulosas, os médicos estão realizando grandes cirurgias, de todos os tipos, em pacientes que são Testemunhas, quer adultos, quer menores. Assim se desenvolveu uma norma de atendimento a tais pacientes, em concordância com o princípio de tratar a “pessoa inteira”. (JAMA, 1981; 246:2471-2472)

OS MÉDICOS enfrentam um crescente desafio, que veio a ser uma grande questão em debate sobre a saúde. Há mais de meio milhão de Testemunhas de Jeová nos Estados Unidos [mais de 250.000 no Brasil] que não aceitam transfusões de sangue. O número de Testemunhas, e dos que se associam com elas, vem aumentando. Embora, antigamente, muitos médicos e autoridades hospitalares considerassem a recusa de uma transfusão um problema jurídico e procurassem obter autorização judicial para administrar o tratamento que achavam ser clinicamente aconselhável, recentes publicações médicas revelam que tem havido apreciável mudança de atitude. Tal se deve possivelmente à maior experiência no campo da cirurgia em pacientes com taxa muito baixa de hemoglobina, e pode ser que reflita também a crescente percepção do princípio legal de consentimento conscientizado.

Hoje, grande número de casos de cirurgia eletiva e de traumatismo, que envolvem Testemunhas, tanto adultas como menores de idade, estão sendo atendidos com bom êxito sem transfusões de sangue. Recentemente, representantes das Testemunhas de Jeová reuniram-se com equipes cirúrgicas e administrativas em alguns dos maiores centros médicos dos Estados Unidos. Estas reuniões melhoraram o entendimento e ajudaram a solucionar questões sobre o reaproveitamento de sangue, transplantes e a questão de evitar o confronto médico/legal.

 

A POSIÇÃO DAS TESTEMUNHAS SOBRE TERAPIAS

 

As Testemunhas de Jeová aceitam tratamento médico e cirúrgico. Com efeito, há entre elas dezenas de médicos, e até mesmo cirurgiões. Mas as Testemunhas são pessoas profundamente religiosas e acreditam que a transfusão de sangue lhes é proibida por passagens bíblicas como estas: “Somente a carne com a sua alma — seu sangue — não deveis comer.” (Gênesis 9:3, 4); “[Tendes] de derramar seu sangue e cobri-lo com pó” (Levítico 17:13, 14); e: “Que se abstenham…da fornicação, e do estrangulado, e do sangue” (Atos 15:19-21).1

Embora estes versículos não estejam expressos em termos médicos, as Testemunhas consideram que proíbem a administração de transfusão de sangue total, de papas de hemácias, e de plasma, bem como de concentrados de leucócitos e de plaquetas. Entretanto, o entendimento religioso das Testemunhas não proíbe de modo absoluto o uso de componentes, como a albumina, as imunoglobulinas e os preparados para hemofílicos; cabe a cada Testemunha decidir individualmente se deve aceitar a esses.2

As Testemunhas crêem que o sangue retirado do corpo deve ser inutilizado, de modo que não aceitam a autotransfusão de sangue retirado de antemão e guardado. As técnicas de coleta ou de hemodiluição intra-operatórias que envolvam guardar o sangue para ser reposto, lhes são inaceitáveis. Entretanto, muitas Testemunhas permitem o uso de equipamento de diálise, do coração-pulmão artificial (não se empregando sangue como volume de escorva), e o reaproveitamento intra-operatório, caso a circulação extracorpórea seja ininterrupta; o médico deve consultar o paciente sobre o que a consciência deste lhe dita.2

Não parece às Testemunhas que a Bíblia faça comentários diretos sobre transplantes de órgãos, por conseguinte, as decisões quanto a transplantes de córnea, de rins, ou de outros tecidos, precisam ser feitas pelas Testemunhas individualmente.

 

SÃO POSSÍVEIS AS GRANDES CIRURGIAS

 

Embora muitas vezes os cirurgiões se tenham recusado a tratar as Testemunhas, porque a posição destas sobre produtos de sangue parecia “amarrar as mãos do médico”, muitos médicos agora decidiram considerar a situação como apenas mais uma complicação que desafia sua perícia. Visto que as Testemunhas não têm objeção ao uso de fluidos substitutos colóides ou cristalóides, tampouco ao eletrocautério, à anestesia hipotensiva,3 nem à hipotermia, estes têm sido usados com sucesso. As aplicações atuais e futuras da hidroxietila de amido (amido-hidroxietil),4 de injeções endovenosas em grandes doses de dextrana ferrosa,5,6 e do “bisturi elétrico”7 são promissoras e não são objetáveis em sentido religioso. Também, se um recém-descoberto substituto do sangue, de perfluorocarbono (Fluosol-DA), mostrar não conter riscos e ser eficaz,8 seu uso não entrará em choque com as crenças das Testemunhas.

Em 1977, Ott e Cooley9 comunicaram que foram feitas 542 operações cardiovasculares em Testemunhas sem o emprego de transfusão de sangue, e chegaram à conclusão de que se pode usar esse processo “com risco aceitavelmente baixo”. Atendendo à nossa solicitação, Cooley fez recentemente um estudo estatístico de 1.026 casos de operações, 22% tendo sido feitas em menores, e concluiu “que o risco da cirurgia em pacientes do grupo das Testemunhas de Jeová não tem sido significativamente maior do que no caso de outros”. Similarmente, Michael E. DeBakey, M.D. (doutor em medicina) comunicou “que na grande maioria das situações [que envolvem Testemunhas] o risco de operação sem o uso de transfusão de sangue não é maior do que no caso de pacientes a quem administramos transfusões de sangue” (comunicado pessoal, março de 1981). A literatura médica registra também grandes cirurgias bem-sucedidas no campo da urologia10 e da ortopedia.11 G. Dean MacEwen, M.D., e J. Richard Bowen, M.D., escrevem que “se fez com êxito em 20 [Testemunhas] menores de idade” a fusão espinhal posterior (dados não publicados, agosto de 1981). Acrescentam: “O cirurgião precisa estabelecer a filosofia do respeito pelo direito do paciente de recusar uma transfusão de sangue e ainda assim realizar a cirurgia de um modo que dê segurança ao paciente.”

Herbsman12 comunica ter tido bom êxito em diversos casos, incluindo alguns que envolviam jovens, “de perda maciça de sangue em casos de traumatismo”. Ele admite que “as Testemunhas estão numa situação de certa desvantagem no que diz respeito à necessidade de sangue. Contudo, é também bastante claro que deveras temos alternativas à substituição do sangue”. Observando que muitos cirurgiões se têm sentido reprimidos de aceitar Testemunhas como pacientes, “temendo conseqüências jurídicas”, ele mostra que esta não é uma preocupação válida.

 

QUESTÕES JURÍDICAS E MENORES DE IDADE

 

As Testemunhas nos Estados Unidos assinam prontamente o formulário da Associação Médica Americana [no Brasil, entregam um Termo de Responsabilidade para o médico e o hospital], eximindo os médicos e os hospitais da responsabilidade,13 e a maioria das Testemunhas traz consigo um cartão datado, assinado por testemunhas, “Alerta Para os Médicos” [“Documento Para Uso Médico”], preparado mediante consulta a autoridades médicas e legais. Estes documentos são válidos para o paciente (ou seus herdeiros e representantes legais) e fornecem proteção aos médicos, pois o Ministro Warren Burger afirmou que um processo instaurado por um caso de negligência médica “seria infundado” depois de assinado tal documento de eximição. Também, comentando isso numa análise sobre “tratamento médico compulsório e a liberdade de religião”, Paris14 escreveu: “Certo comentarista que examinou a literatura [médico-jurídica] relatou: ‘Não pude encontrar nenhuma autoridade para a declaração de que o médico incorreria…em responsabilidade criminal…por não forçar uma transfusão a um paciente que não a queira.’ O risco parece ser mais um fruto duma fértil imaginação jurídica do que uma possibilidade realística.”

O atendimento aos menores de idade representa a maior preocupação, resultando amiúde em um processo legal contra os pais, sob as leis referentes ao abandono dos filhos. Tais processos, porém, são questionados por muitos médicos e advogados, familiarizados com casos das Testemunhas, os quais acreditam que os pais que são Testemunhas procuram dar boa assistência médica a seus filhos. Não querendo eximir-se de sua responsabilidade paterna, nem relegá-la a um juiz, ou a um terceiro, as Testemunhas instam que se dê consideração aos princípios religiosos da família. O Dr. A. D. Kelly, ex-Secretário da Associação Médica Canadense, escreveu15 que “os pais de menores e o parente mais próximo de pacientes inconscientes possuem o direito de interpretar a vontade do paciente.…Não tenho nenhuma admiração pelas medidas judiciais de um tribunal simulado, em sessão às 2 horas da madrugada, para tirar dos pais a custódia do filho”.

É axiomático que os pais têm voz ativa na assistência a seus filhos, no que diz respeito aos potenciais de risco e dos benefícios de uma cirurgia, de uma radioterapia ou uma quimioterapia. Por razões morais, que transcendem a questão do risco das transfusões,16os pais que são Testemunhas de Jeová pedem que sejam usadas terapias não proibidas religiosamente. Isto está em concordância com o princípio médico de tratar “a pessoa inteira”, sem se desperceber o possível dano psicossocial irreversível causado por um tratamento intruso que viole as crenças fundamentais de uma família. Amiúde, grandes centros em todo o país, que tiveram experiências com Testemunhas, aceitam agora a transferência de pacientes de instituições não dispostas a tratar as Testemunhas, até mesmo em casos pediátricos.

 

O DESAFIO QUE O MÉDICO ENFRENTA

 

Compreensivelmente, tratar Testemunhas de Jeová pode parecer representar um dilema para o médico devotado a preservar vidas e a saúde, empregando todas as técnicas à sua disposição. Fazendo editorialmente um preâmbulo de uma série de artigos sobre grandes cirurgias em Testemunhas, Harvey17 admitiu o seguinte: “Acho realmente importunas essas crenças que podem interferir com o meu trabalho.” Mas acrescentou: “Talvez esqueçamos com muita facilidade que a cirurgia é uma profissão que depende da técnica de cada indivíduo. A técnica pode ser melhorada.”

O Professor Bolooki18 tomou conhecimento de um relato desconcertante de que um dos mais movimentados hospitais de traumatologia do condado de Dade, na Flórida, EUA, tinha “como praxe indiscriminada recusar tratar” Testemunhas. Ele salientou que “a maioria dos casos cirúrgicos desse grupo de pacientes está associada com menos risco do que comumente”. Acrescentou: “Embora os cirurgiões talvez achem que estão sendo privados de um instrumento da medicina moderna…estou convicto de que, operando esses pacientes, aprenderão muito.”

Em vez de considerar um paciente que é Testemunha como um problema, é cada vez maior o número de médicos que aceita a situação como um desafio médico. Ao fazerem face ao desafio, desenvolveram um método de tratamento para esse grupo de pacientes que é aceito em diversos centros médicos do país [EUA]. Esses médicos estão dando ao mesmo tempo uma assistência que visa o bem geral do paciente. Conforme observam Gardner et al:19 “Quem será beneficiado, se a doença física do paciente for curada, mas sua vida espiritual com Deus, no conceito dele, ficar comprometida, levando a uma vida sem sentido e talvez pior do que a própria morte.”

As Testemunhas reconhecem que, clinicamente, sua firme convicção parece acrescentar certo grau de risco e pode complicar a assistência recebida. Concordemente, manifestam em geral apreço incomum pela assistência médica que recebem. Além de possuírem os elementos vitais de profunda fé e grande desejo de viver, cooperam com satisfação com os médicos e com a equipe médica. Assim, tanto o paciente como o médico ficam unidos em enfrentar este desafio sem precedentes. 

 

AS TRANSFUSÕES DE SANGUE — QUÃO SEGURAS SÃO?

 

A pessoa refletiva, antes de submeter-se a qualquer sério procedimento médico, procurará saber quais são os possíveis benefícios e os riscos. Que dizer das transfusões de sangue? Elas são agora um dos instrumentos principais da medicina. Muitos médicos genuinamente interessados em seus pacientes talvez hesitem muito pouco em ministrar sangue. Ele tem sido chamado de dádiva da vida.

Milhões de pessoas já doaram sangue ou o aceitaram. Em 1986-87, o Canadá, com uma população de 25 milhões, teve 1,3 milhão de doadores. “[No] ano mais recente de que dispomos de estatísticas, de 12 a 14 milhões de unidades de sangue foram usadas em transfusões, apenas nos Estados Unidos.” — The New York Times, 18 de fevereiro de 1990.

“O sangue sempre tem gozado duma qualidade ‘mágica’”, comenta a Dra. Louise J. Keating. “Nos seus primeiros 46 anos, tanto os médicos como o público entendiam que o suprimento de sangue era mais seguro do que realmente era.” (Revista Cleveland Clinic Journal of Medicine, de maio de 1989) Qual era a situação naquele tempo, e qual é agora?

Mesmo há 30 anos, os patologistas e as equipes dos bancos de sangue foram aconselhados: “O sangue é como dinamite! Pode trazer muitos benefícios ou muitos malefícios. A taxa de mortalidade resultante da transfusão de sangue equivale à da anestesia com éter ou à da apendicectomia. Diz-se que há aproximadamente uma morte em cada 1.000 a 3.000, ou, possivelmente, 5.000 transfusões. Na área de Londres, informa-se haver uma morte para cada 13.000 frascos de sangue transfundido.” — Revista New York State Journal of Medicine, de 15 de janeiro de 1960.

Será que, desde então, já se eliminaram os riscos, de modo que as transfusões são atualmente seguras? Francamente, todo ano centenas de milhares de pessoas apresentam reações adversas ao sangue, e muitas delas morrem. Em vista dos comentários precedentes, o que talvez lhe venha à mente são as doenças transmitidas pelo sangue. Antes de examinarmos este aspecto, considere alguns dos riscos menos conhecidos. 

 

O SANGUE E SUA IMUNIDADE 

 

No começo do século 20, os cientistas aprofundaram o entendimento do homem sobre a maravilhosa complexidade do sangue. Ficaram sabendo que existem diferentes tipos sanguíneos. Compatibilizar o sangue do doador com o sangue do paciente é algo crítico nas transfusões. Se alguém com sangue do tipo A receber o do tipo B, poderá apresentar grave reação hemolítica. Esta pode destruir muitas hemácias e matá-lo rapidamente. Ao passo que a classificação do tipo sanguíneo e os testes de compatibilização são agora uma rotina, ainda acontecem erros. Anualmente, há pessoas que morrem devido às reações hemolíticas.

Os fatos mostram que a questão da incompatibilidade vai muito além dos relativamente poucos tipos sanguíneos que os hospitais procuram compatibilizar. Por quê? Bem, o Dr. Douglas H. Posey Jr., em seu artigo “Transfusão de Sangue: Usos, Abusos e Riscos”, declara: “Há cerca de 30 anos, Sampson descreveu a transfusão de sangue como um procedimento relativamente perigoso…[Desde então] pelo menos 400 antígenos adicionais das hemácias foram identificados e caracterizados. Não resta dúvida de que tal número continuará a aumentar, porque a membrana da hemácia é tremendamente complexa.” — Revista Journal of the National Medical Association, de julho de 1989.

Há cientistas que estudam atualmente os efeitos do sangue transfundido sobre o sistema de defesa, ou imunitário, do corpo. O que poderia isso significar para o leitor, ou para um parente que precise ser operado?

“Cerca de 1 em cada 100 transfusões é acompanhada de febre, calafrios ou [urticária]…Cerca de 1 em cada 6.000 transfusões de hemácias resulta numa reação transfusional hemolítica. Trata-se de grave reação imunológica que pode ocorrer de forma aguda ou com o lapso de alguns dias, depois da transfusão; pode resultar em insuficiência [renal] aguda, em choque, em coagulação intravascular, e até mesmo em morte.” — Conferência realizada pelos Institutos Nacionais de Saúde (sigla NIH, em inglês), dos EUA, em 1988.

Quando os médicos realizam um transplante de coração, do fígado, ou de outro órgão, o sistema imunológico do receptor pode detectar a presença do tecido estranho, e rejeitá-lo. Todavia, uma transfusão é um transplante de tecido. Mesmo o sangue que tenha sido “devidamente” compatibilizado pode causar a supressão do sistema imunológico. Numa conferência de patologistas, destacou-se o ponto que centenas de comunicados médicos “têm relacionado as transfusões de sangue com as reações imunológicas”. — Artigo “Aumentam os Argumentos Contra as Transfusões”, revista Medical World News, de 11 de dezembro de 1989.

Uma das principais tarefas do seu sistema imunológico é detectar e destruir as células malignas (do câncer). Poderia a imunidade suprimida levar ao câncer e à morte? Observe dois comunicados.

O periódico Cancer (15 de fevereiro de 1987) forneceu os resultados dum estudo realizado nos Países-Baixos: “Em pacientes com câncer do cólon, notou-se significativo efeito adverso da transfusão sobre a sobrevida a longo termo. Neste grupo havia uma sobrevida cumulativa geral de 5 anos de 48% dos pacientes transfundidos e de 74% para os não-transfundidos.” Médicos da Universidade do Sul da Califórnia, EUA, fizeram o acompanhamento de cem pacientes submetidos à cirurgia de câncer. “A taxa de recidiva para todos os casos de câncer da laringe era de 14% para os que não receberam sangue, e de 65% para os que receberam. Para o câncer na cavidade oral, da faringe, e do nariz ou sinus, a taxa de recidiva era de 31% sem as transfusões, e de 71% com as transfusões.” — Annals of Otology, Rhinology & Laryngology (Anais de Otorrinolaringologia), de março de 1989.

O cientista dinamarquês Niels Jerne foi um dos agraciados com o Prêmio Nobel de Medicina de 1984. Quando lhe perguntaram por que ele recusara uma transfusão de sangue, ele disse: “O sangue duma pessoa é como suas impressões digitais - não existem dois tipos de sangue exatamente iguais.”

O que tais estudos sugerem sobre as transfusões? O Dr. John S. Spratt concluiu, em seu artigo “As Transfusões de Sangue e a Cirurgia do Câncer”: “O cirurgião cancerologista talvez precise tornar-se um cirurgião que não emprega sangue.” — Revista The American Journal of Surgery, de setembro de 1986.

Outra tarefa básica do seu sistema imunológico é defendê-lo das infecções. Assim, é compreensível que alguns estudos mostrem que os pacientes que recebem sangue são mais propensos à infecção. O Dr. P. I. Tartter promoveu um estudo de cirurgias colorretais. Dentre os pacientes que receberam transfusões, 25 por cento contraíram infecções, em comparação com 4 por cento dos que não receberam nenhuma transfusão. Ele comunica: “As transfusões de sangue estavam ligadas a complicações infecciosas quando ministradas na fase pré-, intra- ou pós-operatória…O risco duma infecção pós-operatória aumentava progressivamente conforme o número de unidades de sangue ministradas.” (Revista The British Journal of Surgery, de agosto de 1988) Os presentes a uma reunião, realizada em 1989, da Associação Americana dos Bancos de Sangue, ficaram a par do seguinte: Ao passo que 23 por cento dos que receberam sangue de doadores, durante uma operação de substituição do quadril, contraíram infecções, os que não receberam sangue algum não apresentaram nenhuma infecção.

O Dr. John A. Collins escreveu a respeito deste efeito das transfusões de sangue: “Seria deveras irônico caso se comprovasse posteriormente que um ‘tratamento’, que dá muito pouca evidência de trazer qualquer benefício, agravasse ainda mais um dos principais problemas enfrentados por tais pacientes.” — Revista World Journal of Surgery, de fevereiro de 1987. 

 

ISENTO DE DOENÇAS OU REPLETO DE PERIGOS? 

 

Médicos conscienciosos e muitos pacientes estão preocupados com as doenças veiculadas pelo sangue. Que doenças? Francamente, não se pode limitá-las a apenas uma; existem deveras muitas.

Depois de considerar as doenças mais conhecidas, o livro Techniques of Blood Transfusion (Técnicas da Transfusão de Sangue; 1982) considera “outras moléstias infecciosas associadas às transfusões”, tais como a sífilis, a infecção por citomegalovírus e a malária. Daí, ele diz: “Várias outras doenças também têm sido comunicadas como sendo transmitidas pela transfusão de sangue, inclusive infecções com o vírus do herpes, a mononucleose infecciosa (vírus de Epstein-Barr), a toxoplasmose, a tripanossomíase [doença do sono africana e a doença de Chagas], a leishmaniose, a brucelose [febre ondulante], o tifo, a filariose, o sarampo, a salmonelose, e a febre de carrapatos do Colorado.”

O SANGUE, OS FÍGADOS LESADOS, E…

 

“Ironicamente, a AIDS transmitida pelo sangue…nunca foi uma ameaça tão grande como outras doenças — a hepatite, por exemplo”, explicou o jornal The Washington Post.

Sim, um grande número de pessoas já ficou muito doente e morreu devido a esse tipo de hepatite, que não possui um tratamento específico. De acordo com a revista U.S.News & World Report (1.° de maio de 1989), cerca de 5 por cento dos que recebem sangue, nos Estados Unidos, contraem hepatite — 175.000 pessoas por ano. Cerca da metade delas tornam-se portadores crônicos, e, pelo menos, 1 de cada 5 manifesta a cirrose hepática, ou o câncer do fígado. Calcula-se que 4.000 delas morrem. Imagine só quais seriam as manchetes que leria se um jumbo caísse, matando todas as pessoas a bordo. Mas 4.000 mortes equivalem a um jumbo lotado que caia todo mês!

Os médicos há muito sabem que uma forma mais branda de hepatite (tipo A) era transmitida por alimentos ou águas contaminados. Daí, eles discerniram que uma forma mais grave espalhava-se por meio do sangue, mas eles não dispunham de nenhum teste para detectá-la no sangue. Por fim, cientistas brilhantes aprenderam a detectar “pegadas” deste vírus (tipo B). Já no início da década de 70, alguns países realizavam testes sanguíneos preventivos. Os estoques de sangue pareciam seguros e o futuro do sangue parecia brilhante! Mas era mesmo?

Não demorou muito para ficar claro que milhares que tinham recebido sangue aprovado nesses testes ainda contraíam hepatite. Muitos, depois de uma doença debilitante, ficaram cônscios de que seus fígados estavam lesados. Mas, se o sangue tinha sido testado, por que isto estava acontecendo? O sangue continha outra forma, chamada de hepatite não-A, não-B (sigla em inglês, NANB). Durante uma década, ela assolou as transfusões — entre 8 e 17 por cento dos transfundidos na Espanha, nos Estados Unidos, em Israel, na Itália e na Suécia a contraíram.

Daí surgiram manchetes tais como “Finalmente Isolado o Misterioso Vírus da Hepatite Não-A, Não-B”; “Acabando com a Febre no Sangue”. Mais uma vez, a mensagem era: ‘Encontrado o agente fugidio!’ Em abril de 1989, o público foi informado de que estava então disponível um teste para a NANB, agora chamada de hepatite C.

Talvez fique imaginando se este alívio é prematuro. Com efeito, pesquisadores italianos comunicaram ter encontrado outro vírus da hepatite, um mutante, que poderia ser responsável por um terço dos casos. “Algumas autoridades”, comentou o boletim Harvard Medical School Health Letter (de novembro de 1989), “preocupam-se de que o A, o B, o C, e o D não sejam todo o alfabeto dos vírus da hepatite; ainda podem aflorar outros”. O jornal The New York Times (13 de fevereiro de 1990) declarava: “Os peritos têm fortes suspeitas de que outros vírus possam causar a hepatite; se descobertos, eles serão designados hepatite E, e assim por diante.”

Vêem-se os bancos de sangue confrontados com pesquisas mais longas em busca de testes que tornem seguro o sangue? Citando o problema de custos, um dos diretores da Cruz Vermelha Americana teceu o seguinte comentário perturbador: “Simplesmente não podemos continuar a adicionar teste após teste para cada agente infeccioso que poderia ser disseminado.” — Revista Medical World News, de 8 de maio de 1989.

Mesmo o teste para a hepatite B é falível; muitos ainda a contraem através do sangue. Ademais, ficarão as pessoas satisfeitas com o anunciado teste para a hepatite C? A revista The Journal of the American Medical Association (5 de janeiro de 1990) mostrava que pode passar um ano antes que os anticorpos da doença sejam detectáveis por meio desse teste. Neste ínterim, as pessoas que receberem transfusões desse sangue poderão enfrentar fígados lesados — e a morte.

Na realidade, a lista de tais doenças está aumentando. Talvez tenha lido manchetes tais como: “É a Doença de Lyme Transmitida por Transfusão? É Improvável, mas os Peritos São Cautelosos.” Quão seguro é o sangue de alguém que apresente positividade do mal de Lyme? Perguntou-se a um painel de autoridades sanitárias se eles aceitariam tal sangue. “Todos responderam que não, embora nenhum deles recomendasse jogar fora o sangue de tais doadores.” O que deve o público pensar sobre o sangue de bancos, que nem os próprios peritos aceitariam? — The New York Times, de 18 de julho de 1989.

Um segundo motivo de preocupação é que o sangue coletado em um país em que prolifere determinada doença pode ser usado em local bem distante, onde nem o público nem os médicos estão alertas a seus perigos. Com o aumento das viagens, hoje em dia, inclusive de refugiados e de imigrantes, aumenta o risco de um produto de sangue conter uma doença estranha.

Ademais, um infectologista avisou: “Os estoques de sangue talvez precisem ser submetidos a testes de detecção, para impedir a transmissão de várias moléstias que não eram, anteriormente, consideradas infecciosas, inclusive a leucemia, o linfoma e a demência [ou mal de Alzheimer].” — Periódico Transfusion Medicine Reviews, de janeiro de 1989.

Embora tais riscos nos dêem calafrios na espinha, outros têm gerado muito mais medo. 

 

A PANDEMIA DE AIDS 

 

“A AIDS mudou para sempre o modo de pensar dos médicos e dos pacientes sobre o sangue. E isso não é má idéia, disseram os médicos reunidos nos Institutos Nacionais de Saúde [dos EUA], para uma conferência sobre a transfusão de sangue.” — Jornal The Washington Post, de 5 de julho de 1988.

A pandemia de AIDS (síndrome de imunodeficiência adquirida) tem vigorosamente despertado as pessoas para o perigo de contraírem doenças infecciosas através do sangue. Milhões acham-se agora infectados. Ela se espalha a ponto de fugir do controle. E sua taxa de mortes é virtualmente de 100 por cento.

A AIDS é causada pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV), que pode ser transmitido pelo sangue. A moderna praga de AIDS veio a lume em 1981. Já no ano seguinte, peritos sanitários constataram que o vírus poderia ser transmitido por produtos de sangue. Admite-se atualmente que a indústria hemoterápica foi muito lenta em sua reação, mesmo depois de existirem testes que identificavam o sangue que continha anticorpos HIV. Finalmente começaram, em 1985,* os testes do sangue dos doadores, mas, mesmo então, não eram aplicados a produtos do sangue já estocados.

A doença de Chagas ilustra como o sangue leva doenças para pessoas que moram bem longe. A revista The Medical Post (16 de janeiro de 1990) noticia que ‘10-12 milhões de pessoas na América Latina padecem de infecção crônica’ dessa doença. Ela tem sido chamada de “um dos mais importantes riscos transfusionais da América do Sul”. Um “inseto assassino” pica no rosto uma vítima adormecida, suga seu sangue e defeca na ferida. A vítima pode ser portadora da doença de Chagas durante muitos anos (no ínterim, possivelmente doando sangue) antes de manifestar as complicações cardíacas fatais.

Por que deveria isso preocupar pessoas em continentes distantes? No The New York Times (23 de maio de 1989), o Dr. L. K. Altman relatou que tinha pacientes com a doença de Chagas pós-transfusional, um dos quais morreu. Altman escreveu: “Casos adicionais podem ter passado despercebidos porque [os médicos aqui] não estão familiarizados com a doença de Chagas, nem se dão conta de que poderia ser disseminada por meio de transfusões.” Sim, o sangue pode ser um veículo por meio do qual as doenças vão bem longe.

Depois disso, assegurou-se ao público: ‘Os estoques de sangue agora são seguros.’ Mais tarde, contudo, revelou-se que existe um perigoso ‘período de latência’ da AIDS. Depois de uma pessoa ser infectada, podem decorrer meses até que comece a produzir anticorpos detectáveis. Tal pessoa, sem se dar conta de que abriga o vírus, poderia doar sangue que daria resultado negativo nos testes. Isto já tem acontecido. Houve pessoas que manifestaram a AIDS depois de terem recebido uma transfusão de tal sangue! 

 

VÍRUS DA AIDS

 

O quadro se tornou ainda mais sombrio. A revista The New England Journal of Medicine (1.° de junho de 1989) noticiou as “Silenciosas Infecções com o HIV”. Foi confirmado que pessoas podem abrigar o vírus da AIDS durante anos, sem este ser detectado pelos atuais testes indiretos. Alguns gostariam de minimizar tais casos, como sendo raros, mas estes provam “que os riscos de transmissão da AIDS via sangue e seus componentes não pode ser totalmente eliminado”. (Periódico Patient Care, de 30 de novembro de 1989) A conclusão perturbadora é: Um teste negativo não pode ser entendido como um atestado de boa saúde. Quantos ainda contrairão a AIDS por meio de sangue? 

 

O PRÓXIMO SAPATO? OU SAPATOS? 

 

Muitos que moram em apartamentos já ouviram a história, comum na língua inglesa, do tremendo baque causado por um sapato jogado no chão, no andar de cima; eles talvez tenham ficado tensos ao aguardarem o segundo ser jogado. No dilema do sangue, ninguém sabe quantos sapatos mortíferos ainda serão jogados no chão.

O vírus da AIDS foi designado HIV, mas alguns peritos o chamam agora de HIV-1. Por quê? Porque encontraram outro vírus do tipo da AIDS (HIV-2). Pode provocar sintomas da AIDS e é bem comum em algumas localidades. Ademais, “não é detectado de forma consistente pelos testes de AIDS agora utilizados aqui”, noticia o The New York Times. (27 de junho de 1989) “As novas descobertas…tornam mais difícil que os bancos de sangue estejam certos de que uma doação seja segura.”

Ou que dizer dos parentes distantes do vírus da AIDS? Uma comissão presidencial (dos EUA) disse, sobre um de tais vírus, que “se cria ser ele a causa da leucemia/linfoma da célula-T em adultos e de uma grave doença neurológica”. Este vírus já se acha na população dos doadores de sangue e pode ser espalhado pelo sangue. As pessoas têm o direito de indagar-se: ‘Quão eficaz é o teste de detecção de tais outros vírus, realizado pelos bancos de sangue?’

O Dr. Knud Lund-Olesen escreveu: “Visto que…algumas pessoas dos grupos de alto risco se oferecem como doadores, por serem submetidas automaticamente a testes de detecção da AIDS, acho que existe motivo de se relutar em aceitar uma transfusão de sangue. As Testemunhas de Jeová já recusam isto por muitos anos. Será que elas olhavam para o futuro?” — Ugeskrift for Læger (Semanário dos Médicos), 26 de setembro de 1988.

Realmente, só o tempo dirá quantos vírus veiculados pelo sangue espreitam nos estoques de sangue. “O que se desconhece pode dar mais motivos de preocupação do que o que se conhece”, escreve o Dr. Harold T. Meryman. “Será difícil relacionar com transfusões os vírus transmissíveis, com muitos anos de tempo de incubação, sendo ainda mais difíceis de detectar. O grupo HTLV certamente é apenas o primeiro destes a vir a tona.” (Transfusion Medicine Reviews, de julho de 1989) “Como se não bastassem os males causados pela epidemia de AIDS,…vieram à atenção, na década de 80, vários riscos recém-propostos ou descritos da transfusão. Não é preciso grande imaginação para predizer que existem outras graves viroses e que elas são transmitidas por transfusões homólogas.” — Limiting Homologous Exposure: Alternative Strategies (Limitar a Exposição ao Sangue Homólogo: Estratégias Alternativas), de 1989.

Foram tantos os “sapatos” já jogados no chão que os Centros de Controle de Moléstias (CDC), dos EUA, recomendam “precauções universais”. Isto é, ‘os que trabalham no setor de saúde deviam presumir que todos os pacientes estão infectados com o HIV e com outras patogenias veiculadas pelo sangue’. Com bom motivo, os que trabalham no setor de saúde e os membros do público em geral estão reavaliando seu conceito sobre o sangue.


* Não podemos presumir que todo sangue esteja mesmo sendo submetido a testes. Por exemplo, relatou-se que, no começo de 1989, cerca de 80 por cento dos bancos de sangue do Brasil não estavam sob o controle do Governo, nem estavam submetendo o sangue a testes de detecção da AIDS.

 

ALTERNATIVAS DE QUALIDADE PARA A TRANSFUSÃO

 

O leitor poderia pensar: ‘As transfusões são perigosas, mas será que existem alternativas de qualidade?’ É uma boa pergunta, e observe a palavra “qualidade”.

Todos, inclusive as Testemunhas de Jeová, desejam um tratamento médico eficaz de alta qualidade. O Dr. Grant E. Steffen comentou sobre dois elementos-chaves: “Tratamento médico de qualidade é a capacidade de os elementos desse tratamento alcançarem alvos médicos e não-médicos legítimos.” (Revista The Journal of the American Medical Association, 1.° de julho de 1988) ‘Alvos não-médicos’ incluiriam não violar a ética ou a consciência do paciente, baseada na Bíblia. — Atos 15:28, 29.

“Temos de concluir que, atualmente, existem muitos pacientes que recebem componentes sanguíneos que não têm nenhuma probabilidade de beneficiar-se duma transfusão (o sangue não é necessário), e, ademais, correm significativo risco de sofrer efeitos indesejáveis. Nenhum médico exporia deliberadamente um paciente a uma terapia que não pudesse beneficiá-lo, mas que talvez o prejudicasse, mas é exatamente isso que ocorre quando o sangue é transfundido desnecessariamente.” — Transfusion-Transmitted Viral Diseases (Viroses Transmitidas por Transfusão), de 1987.

Existem meios legítimos e eficazes de cuidar de graves problemas de saúde sem se usar sangue? Felizmente a resposta é sim.

Embora a maioria dos cirurgiões afirme só ter dado sangue quando isso era absolutamente necessário, diminuiu rapidamente o emprego de sangue, por parte deles, depois que surgiu a epidemia de AIDS. Um editorial do periódico Mayo Clinic Proceedings (setembro de 1988) dizia que “um dos poucos benefícios da epidemia” foi que “resultou em várias estratégias por parte dos pacientes e dos médicos para evitar a transfusão de sangue”. Um dirigente de banco de sangue explica: “O que deveras mudou foi a intensidade da mensagem, a receptividade dos clínicos à mensagem (por causa da maior percepção dos riscos), e a demanda para que se considerassem as alternativas.” — Periódico Transfusion Medicine Reviews, de outubro de 1989.

Observe que existem alternativas! Isto se torna compreensível quando examinamos os motivos pelos quais se transfunde sangue.

A hemoglobina contida nos glóbulos vermelhos transporta o oxigênio necessário para a boa saúde e a vida. Assim, caso uma pessoa tenha perdido muito sangue, pareceria lógico apenas repô-lo. Normalmente, dispõe-se de cerca de 14 ou 15 gramas de hemoglobina em cada 100 centímetros cúbicos de sangue. (Outra forma de medir sua concentração é o hematócrito, que comumente é de cerca de 45 por cento.) A “regra” aceita era de transfundir um paciente antes duma operação se sua taxa de hemoglobina fosse inferior a 10 (ou um hematócrito de 30 por cento). A revista suíça Vox Sanguinis (março de 1987) noticiou que “65% dos [anestesiologistas] exigiam que os pacientes tivessem uma taxa pré-operatória de hemoglobina de 10 g/dL para a cirurgia eletiva”.

Mas, numa conferência sobre a transfusão de sangue, realizada em 1988, o Professor Howard L. Zauder perguntou: “Como Foi que Obtivemos um ‘Número Mágico’?” Ele declarou expressamente: “A etiologia dessa exigência de que o paciente deva ter 10 gramas de hemoglobina (Hgb) antes de receber anestesia está envolta em tradição, está revestida de obscuridade e não é comprovada por evidência clínica ou experimental.” Imagine só os muitos milhares de pacientes submetidos a transfusões que foram motivadas por uma exigência ‘obscura, não comprovada’!

Alguns talvez fiquem imaginando: ‘Por que será que um nível 14 de hemoglobina é normal, se a pessoa consegue passar com muito menos?’ Bem, a pessoa dispõe assim de considerável reserva da capacidade de transporte de oxigênio, de modo que esteja pronta para algum exercício ou trabalho pesado. Estudos feitos de pacientes anêmicos até mesmo revelam que “é difícil detectar um déficit na capacidade de trabalho, com concentrações de hemoglobina tão baixas quanto 7 g/dL. Outros têm encontrado evidência de apenas uma moderada redução do desempenho”. — Contemporary Transfusion Practice (A Prática Transfusional Contemporânea), 1987.

Enquanto que os adultos se ajustam a uma baixa taxa de hemoglobina, que dizer das crianças? O Dr. James A. Stockman III diz: “Com poucas exceções, os bebês prematuros apresentarão um declínio da hemoglobina do primeiro ao terceiro mês…As indicações de transfusão no berçário não estão bem definidas. Deveras, muitos bebês parecem tolerar níveis notavelmente baixos de concentração de hemoglobina, sem nenhuma dificuldade clínica aparente.” — Revista Pediatric Clinics of North America, de fevereiro de 1986.

“Alguns autores declararam que valores tão baixos da hemoglobina quanto de 2 a 2,5 g/100 ml podem ser aceitáveis.…A pessoa saudável poderá tolerar uma perda sanguínea de 50 por cento da massa de glóbulos vermelhos e permanecer quase que inteiramente assintomática, caso a perda do sangue ocorra por certo período de tempo.” — Techniques of Blood Transfusion (Técnicas da Transfusão de Sangue), de 1982.

Tais informações não significam que não se precisa fazer nada quando uma pessoa perde muito sangue num acidente, ou numa operação. Caso a perda seja rápida e acentuada, cai a pressão arterial da pessoa, e ela pode entrar em choque. O que se precisa basicamente é que se faça cessar a hemorragia e se restaure o volume do sistema circulatório. Isso impedirá o choque e manterá em circulação as restantes hemácias e outros componentes do sangue.

A reposição do volume do plasma pode ser conseguida sem se usar sangue total ou plasma sanguíneo.* Diversos líquidos que não contêm sangue constituem eficazes expansores do volume do plasma. O mais simples de todos é a solução salina, que é tanto barata como compatível com o nosso sangue. Existem também líquidos dotados de propriedades especiais, tais como a dextrana, o Haemaccel, e a solução de lactato de Ringer. A hidroxietila de amido (HES; amido-hidroxietil) é um mais recente expansor do volume do plasma e “pode ser seguramente recomendado para aqueles pacientes [queimados], que objetem a produtos de sangue”. (Journal of Burn Care & Rehabilitation, janeiro/fevereiro de 1989) Tais líquidos apresentam vantagens definitivas. “Soluções cristalóides [tais como a solução salina normal e o lactato de Ringer], o Dextran e o HES são relativamente atóxicos e baratos, prontamente disponíveis, podem ser estocados à temperatura ambiente, não exigem testes de compatibilidade e estão isentos do risco de doenças transmitidas pela transfusão.” — Blood Transfusion Therapy—A Physician’s Handbook (A Terapia da Transfusão de Sangue — Manual do Médico), de 1989.

Talvez pergunte, porém: ‘Por que funcionam bem os líquidos de reposição não-sanguíneos, uma vez que eu preciso de glóbulos vermelhos para fazer com que o oxigênio seja transportado por todo o meu corpo?’ Conforme mencionado, a pessoa dispõe de reservas para o transporte de oxigênio. Caso perca sangue, acionam-se maravilhosos mecanismos compensatórios. Seu coração bombeia mais sangue em cada batimento. Visto que o sangue perdido foi substituído por um líquido adequado, o sangue agora diluído flui mais facilmente, mesmo nos pequenos vasos. Em resultado de mudanças químicas, mais sangue é liberado para os tecidos. Estas adaptações são tão eficazes que, se somente a metade de suas hemácias permanecerem, o transporte de oxigênio poderá ser até cerca de 75 por cento do normal. Um paciente em repouso utiliza apenas 25 por cento do oxigênio disponível em seu sangue. E a maioria dos anestésicos reduz a necessidade de oxigênio do corpo. 

 

COMO PODEM OS MÉDICOS SER DE AJUDA? 

 

Médicos peritos podem ajudar a pessoa que perdeu sangue e que, assim, dispõe de menos glóbulos vermelhos. Uma vez restaurado o volume do plasma, os médicos podem administrar oxigênio em alta concentração. Isto o torna disponível em maior quantidade para o corpo e, muitas vezes, tem dado notáveis resultados. Os médicos ingleses usaram isto com uma senhora que tinha perdido tanto sangue que “sua taxa de hemoglobina caiu para 1,8 g/dL. Ela foi tratada com êxito…[com] elevada inspiração de oxigênio concentrado e transfusões de grandes volumes de solução coloidal de gelatina [Haemaccel]”. (Anaesthesia, de janeiro de 1987) O informe também diz que outros, com perdas agudas de sangue, foram tratados com êxito em câmaras hiperbáricas (de oxigênio).

O aparelho coração-pulmão tem sido de grande ajuda em cirurgias de pacientes que não desejam sangue.

Os médicos também podem ajudar seus pacientes a formar mais glóbulos vermelhos. Como? Por lhes darem concentrados de ferro (no músculo ou na veia), que podem ajudar o corpo a produzir glóbulos vermelhos três a quatro vezes mais rápido do que o normal. Recentemente, outra ajuda tornou-se disponível. Seus rins produzem um hormônio chamado eritropoietina (EPO), que estimula a medula óssea a produzir hemácias. Acha-se agora disponível a EPO sintética (recombinante). Os médicos podem ministrá-la a alguns pacientes anêmicos, ajudando-os assim a produzir mui rapidamente os glóbulos vermelhos de reposição.

Mesmo no decorrer duma cirurgia, cirurgiões e anestesiologistas peritos e conscienciosos podem ser de ajuda por empregar métodos avançados de conservação do sangue. Nunca é demais enfatizar o uso de técnicas operatórias meticulosas, tais como o bisturi elétrico para minimizar a hemorragia. Às vezes é possível aspirar e filtrar o sangue que flua em um ferimento, repondo-o depois em circulação.#

Pacientes num aparelho coração-pulmão, tendo como volume de escorva um líquido isento de sangue, podem beneficiar-se da hemodiluição resultante, perdendo menos glóbulos vermelhos.

“Conceitos antigos sobre o transporte de oxigênio para os tecidos, sobre a cura dos ferimentos e sobre o ‘valor nutritivo’ do sangue, estão sendo descartados. A experiência com pacientes que são Testemunhas de Jeová demonstra que a anemia grave é bem-tolerada.” — The Annals of Thoracic Surgery, de março de 1989.

E existem outros meios de ajudar. Resfriar um paciente, para reduzir suas necessidades de oxigênio durante a cirurgia. A anestesia hipotensiva. A terapia para melhorar a coagulação sanguínea. A desmopressina (sigla em inglês, DDAVP) para abreviar o tempo de sangramento. Os “bisturis” a laser. Verá essa lista aumentar, à medida que os médicos, bem como os pacientes preocupados, procuram evitar as transfusões de sangue. Esperamos que o leitor jamais perca grande quantidade de sangue. Mas, se perder, é bem provável que médicos peritos consigam cuidar de seu problema sem usar transfusões de sangue, que apresentam tantos riscos. 

 

CIRURGIA, SIM — MAS SEM TRANSFUSÕES 

 

Muitas pessoas, hoje em dia, não aceitam sangue. Por questões de saúde, elas solicitam aquilo que as Testemunhas buscam, primariamente, por motivos religiosos: cuidados médicos de qualidade que empreguem tratamentos alternativos sem sangue. Conforme observamos, grandes cirurgias ainda são possíveis. Se ainda tiver quaisquer dúvidas, outras evidências disponíveis na literatura médica poderão dissipá-las.

Crianças pequenas também? “Quarenta e oito operações pediátricas de coração aberto foram realizadas com técnicas que não utilizavam sangue, apesar de sua complexidade cirúrgica.” Algumas crianças eram bem pequenas, chegando a pesar somente 4,7 quilos. “Devido ao êxito contínuo em Testemunhas de Jeová, e ao fato de que transfusões de sangue envolvem o risco de graves complicações, nós estamos atualmente realizando a maioria de nossas operações cardíacas pediátricas sem transfusões.” — Circulation, de setembro de 1984.

O artigo “Grande Substituição Quádrupla da Articulação em Membro das Testemunhas de Jeová” (Orthopaedic Review, agosto de 1986) falou de um paciente anêmico em “adiantado estado de degeneração, tanto dos joelhos como dos quadris”. Utilizou-se a dextrana ferrosa antes e depois da cirurgia, feita por etapas, que teve êxito. A revista British Journal of Anaesthesia (1982) noticiou a respeito duma Testemunha de 52 anos, com taxa de hemoglobina inferior a 10. Empregando-se a anestesia hipotensiva para minimizar a perda de sangue, ela recebeu uma prótese total do quadril e do ombro. Uma equipe cirúrgica da Universidade de Arkansas (EUA) também empregou esse método em cem substituições do quadril de Testemunhas e todos os pacientes se recuperaram. O professor que dirige esse departamento comenta: “O que aprendemos destes pacientes (Testemunhas), empregamos agora em todos os nossos pacientes em que fazemos a prótese total do quadril.”

A consciência de algumas Testemunhas lhes permite aceitar transplantes de órgãos, se isso for feito sem sangue. Um informe sobre 13 transplantes de rins concluía: “Os resultados gerais sugerem que o transplante renal pode ser aplicado, segura e eficazmente, à maioria das Testemunhas de Jeová.” (Transplantation, junho de 1988) Igualmente, a recusa de tomar sangue não serviu de empecilho até mesmo para bem-sucedidos transplantes de coração.

‘Que dizer da cirurgia sem sangue, de outros tipos?’, talvez se pergunte. O boletim Medical Hotline (abril/maio de 1983) mencionava a cirurgia feita em “Testemunhas de Jeová que foram submetidas a grandes operações ginecológicas e obstétricas sem transfusões de sangue”. O boletim informava: “Não houve maior número de óbitos e de complicações do que no caso de mulheres submetidas a operações similares, com transfusões de sangue.” Daí, o boletim comentou: “Os resultados deste estudo podem justificar novo enfoque sobre o uso de sangue para todas as mulheres submetidas a operações obstétricas e ginecológicas.”

No hospital da Universidade de Göttingen (Alemanha), 30 pacientes que rejeitaram sangue foram submetidos à cirurgia geral. “Não surgiu nenhuma complicação que não pudesse ter surgido no caso de pacientes que aceitam transfusões de sangue.…Não se deve superestimar que o recurso a uma transfusão não é possível, e isso não deveria levar à recusa de realizar uma operação que seja necessária e cirurgicamente justificável.” — Risiko in der Chirurgie (Risco na Cirurgia), 1987.

Mesmo a neurocirurgia (operação do cérebro) sem o emprego de sangue tem sido realizada em numerosos adultos e crianças, por exemplo, no Centro Médico da Universidade de Nova Iorque, EUA. Em 1989, o Dr. Joseph Ransohoff, chefe do departamento de neurocirurgia, escreveu: “Está bem claro que, na maioria dos casos, evitar produtos que contenham sangue pode ser conseguido com um risco mínimo para os pacientes que têm princípios religiosos contra o uso de tais produtos, especialmente se a cirurgia puder ser realizada de forma expedita e com tempo operatório relativamente curto. De considerável interesse é o fato de que eu muitas vezes esqueço que o paciente é Testemunha até a hora de lhe dar alta hospitalar, quando eles me agradecem por eu ter respeitado suas crenças religiosas.”

Por fim, podem complicadas cirurgias cardiovasculares ser realizadas, sem sangue, em adultos e em crianças? O Dr. Denton A. Cooley foi um dos pioneiros a fazer exatamente isso. Como pode ver no artigo médico cuja tradução acha-se reimpressa no Apêndice, nas páginas 27-9, com base em anterior análise, a conclusão do Dr. Cooley foi de “que o risco da cirurgia em pacientes do grupo das Testemunhas de Jeová não tem sido significativamente maior do que no caso de outros”. Atualmente, depois de realizar 1.106 de tais operações, ele escreve: “Em cada caso, mantenho o acordo ou contrato feito com o paciente”, isto é, de não usar sangue algum.

Os cirurgiões têm observado que a boa atitude é outro fator evidenciado pelas Testemunhas de Jeová. “A atitude destes pacientes tem sido exemplar”, escreveu o Dr. Cooley em outubro de 1989. “Eles não têm o medo de complicações, nem mesmo da morte, como a maioria dos pacientes. Têm profunda e duradoura fé em sua crença, e em seu Deus.”

Isto não significa que desejam asseverar o direito de morrer. Buscam ativamente cuidados médicos de qualidade, porque desejam ficar bons. Estão convictos de que é sábio obedecer à lei de Deus sobre o sangue, conceito este que exerce uma influência positiva na cirurgia que não utiliza sangue.

O Professor Dr. V. Schlosser, do hospital-cirúrgico da Universidade de Freiburg (Alemanha), comentou: “Entre este grupo de pacientes, a incidência de hemorragia no período perioperatório (“em torno de”) não era maior; as complicações, se é que fazia diferença, eram menos comuns. O conceito especial sobre as doenças, típico das Testemunhas de Jeová, exercia uma influência positiva no processo perioperatório.” — Revista Herz Kreislauf, de agosto de 1987.


* As Testemunhas de Jeová não aceitam transfusões de sangue total, de hemácias, de leucócitos, de plaquetas ou de plasma sanguíneo. Quanto a frações menores, tais como de imunoglobulinas, veja A Sentinela de 1.° junho de 1990, páginas 30-1.

# A Sentinela de 1.° de março de 1989, páginas 30-1, considera os princípios bíblicos que têm que ver com os métodos de recuperar sangue e com os equipamentos de circulação do sangue (extracorpórea).

 

  EXPERIÊNCIAS REAIS ENTRE AS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ E A QUESTÃO DE SANGUE: REPORTAGEM DO GLOBO REPÓRTER

 

Um caso clássico é o das Testemunhas de Jeová. Todo mundo sabe que eles não aceitam cirurgia com transfusão de sangue, por uma interpretação do que está na Bíblia. A equipe do Globo Repórter pretendia mostrar isso no programa, como um exemplo de fé que atrapalha o tratamento de saúde… Mas será que é simples assim?

Nos Estados Unidos – e também no Brasil – muitos médicos têm uma visão diferente: aceitam os limites impostos pela religião e vão buscar técnicas alternativas para evitar transfusões. Essa visão nova permitiu à Gabriela reconquistar a energia, que agora ela esbanja nas brincadeiras.

“Era uma criança de lábios e unhas bem roxinhos. Uma aparência sempre bem abatida”, conta Ruth, mãe de Gabriela. A menina nasceu com um problema sério no coração e precisava de, pelo menos, duas cirurgias – uma delas antes de completar um ano. O problema: a mãe é Testemunha de Jeová.

“Não faria transfusão de sangue de jeito nenhum. Primeiro porque eu ajo de encontro com os meus princípios. Em segundo lugar, existem riscos de outras doenças com a transfusão. Eu tinha certeza que eu encontraria uma equipe disposta a operar a Gabriela”, afirma a dona de casa Ruth de Camargo.

E ela encontrou! Na cirurgia de Gabriela foi usada uma máquina que permite reaproveitar o sangue do próprio paciente. “É o aparelho que faz a função do coração e dos pulmões durante a cirurgia cardíaca”, explica o cirurgião cardíaco Walter Gomes.

É um recurso a mais, que pode ser posto a serviço das Testemunhas de Jeová. O doutor Walter é professor da Universidade Federal de São Paulo e há três anos utiliza outras técnicas que possibilitam cirurgias delicadas, sem transfusão de sangue. Ele começou a fazer isso a pedido dos religiosos.

“O tratamento dos pacientes Testemunhas de Jeová ajudava a beneficiar outros pacientes, porque, com essa experiência, nós estamos evitando a transfusão sangüínea em outros pacientes, e, conseqüentemente minimizando riscos”, declara Walter Gomes.

O primeiro passo é acabar com os sangramentos desnecessários. Isso é possível com o bisturi elétrico, que cauteriza, ao mesmo tempo em que corta. Outra técnica é dar para o paciente, antes da cirurgia, um hormônio que estimula a produção de glóbulos vermelhos. É uma forma de combater anemias

“Mesmo se ele tiver uma perda durante a cirurgia, ele já está preparado para recuperar. O paciente vai para a cirurgia com uma quantidade maior de sangue, fabricado por ele mesmo”, observa o cirurgião Walter Gomes.

Gabriela foi operada por uma outra equipe, comandada pela doutora Luciana da Fonseca – que segue a mesma linha. “É uma satisfação muito grande, porque, na verdade, eu cumpri o meu objetivo, que foi agradar e respeitar um direito do paciente”, constata a cirurgia cardíaca.

Quando se encontra o equilíbrio entre medicina e fé, quem ganha é o paciente. “Agora estou correndo, brincando, pulando…”, diz Gabriela.

“Se houver algum acontecimento catastrófico em que o paciente realmente precise de transfusão de sangue vai ser um dilema de consciência. O paciente religioso pede para não tomar a transfusão e eu espero nunca ter que passar por essa decisão”, comenta Walter Gomes

As convicções religiosas do ser humano são influenciadas por sua relação com Deus e com outras pessoas. Quando o enfermo discorda do curso de tratamento, pode haver o conflito ético e moral. Porém, o respeito pelo médico as convicções religiosas do paciente, equivale respeitar a autonomia e autodeterminação individual, que se fundamenta no principio da dignidade da natureza humana. O caso das Testemunhas de Jeová ilustra a aplicação destes princípios.


* Paulo, em Atos 17:25, 28, Tradução do Novo Mundo das Escrituras Sagradas.

# Similares proibições foram posteriormente incluídas no Qur´_an.

 

ANEXO: RESOLUÇÃO CFM nº 1.021/80 

 

O CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, usando da atribuição que lhe confere a Lei nº 3.268, de 30 de setembro de 1957, regulamentada pelo Decreto nº 44.045, de 19 de julho de 1958, e

CONSIDERANDO o disposto no artigo 153, parágrafo 2º da Constituição Federal; no artigo 146 e seu parágrafo 3º, inciso I e II do Código Penal; e nos artigos 1º, 30 e 49 do Código de Ética Médica;

CONSIDERANDO o caso de paciente que, por motivos diversos, inclusive os de ordem religiosa, recusam a transfusão de sangue;

CONSIDERANDO finalmente o decidido em sessão plenária deste Conselho realizada no dia 26 de setembro de 1980,

RESOLVE: 

 

Adotar os fundamentos do anexo PARECER, como interpretação autêntica dos dispositivos deontológicos referentes a recusa em permitir a transfusão de sangue, em casos de iminente perigo de vida.

Rio de Janeiro, 26 de setembro de 1980. 

 

GUARACIABA QUARESMA GAMA

Presidente em Exercício

JOSÉ LUIZ GUIMARÃES SANTOS

Secretário-Geral

Publicada no D.O.U.(Seção I - Parte II) de 22/10/80

PARECER PROC. CFM nº 21/80 

 

O problema criado, para o médico, pela recusa dos adeptos da Testemunha de Jeová em permitir a transfusão sangüínea, deverá ser encarada sob duas circunstâncias:

1 - A transfusão de sangue teria precisa indicação e seria a terapêutica mais rápida e segura para a melhora ou cura do paciente. Não haveria, contudo, qualquer perigo imediato para a vida do paciente se ela deixasse de ser praticada. Nessas condições, deveria o médico atender ao pedido de seu paciente, abstendo-se de realizar a transfusão de sangue.

Não poderá o médico proceder de modo contrário, pois tal lhe é vedado pelo disposto no artigo 32, letra "f" do Código de Ética Médica:

"Não é permitido ao médico:

f) exercer sua autoridade de maneira a limitar o direito do paciente resolver sobre sua pessoa e seu bem-estar".

 

2 - O paciente se encontra em iminente perigo de vida e a transfusão de sangue é a terapêutica indispensável para salvá-lo. Em tais condições, não deverá o médico deixar de praticá-la apesar da oposição do paciente ou de seus responsáveis em permiti-la. O médico deverá sempre orientar sua conduta profissional pelas determinações de seu Código. No caso, o Código de Ética Médica assim prescreve:

"Artigo 1º - A medicina é uma profissão que tem por fim cuidar da saúde do homem, sem preocupações de ordem religiosa..."

"Artigo 30 - O alvo de toda a atenção do médico é o doente, em benefício do qual deverá agir com o máximo de zêlo e melhor de sua capacidade profissional".

"Artigo 19 - O médico, salvo o caso de "iminente perigo de vida", não praticará intervenção cirúrgica sem o prévio consentimento tácito ou explícito do paciente e, tratando-se de menor incapaz, de seu representante legal".

Por outro lado, ao praticar a transfusão de sangue, na circunstância em causa, não estará o médico violando o direito do paciente.

Realmente, a Constituição Federal determina em seu artigo 153, Parágrafo 2º que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei".

Aquele que violar esse direito cairá nas sanções do Código Penal quando este trata dos crimes contra a liberdade pessoal e em seu artigo 146 preconiza:

"Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda".

Contudo, o próprio Código Penal no parágrafo 3º desse mesmo artigo 146, declara:

"Não se compreendem na disposição deste artigo:

 

I - a intervenção médica ou cirúrgica sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida". A recusa do paciente em receber a transfusão sangüínea, salvadora de sua vida, poderia, ainda, ser encarada como suicídio. Nesse caso, o médico, ao aplicar a transfusão, não estaria violando a liberdade pessoal, pois o mesmo parágrafo 3º do artigo 146, agora no inciso II, dispõe que não se compreende, também, nas determinações deste artigo: "a coação exercida para impedir o suicídio". 

 

CONCLUSÃO 

 

Em caso de haver recusa em permitir a transfusão de sangue, o médico, obedecendo a seu Código de Ética Médica, deverá observar a seguinte conduta:

1º - Se não houver iminente perigo de vida, o médico respeitará a vontade do paciente ou de seus responsáveis.

2º - Se houver iminente perigo de vida, o médico praticará a transfusão de sangue, independentemente de consentimento do paciente ou de seus responsáveis. 

 

Dr. TELMO REIS FERREIRA

Relator

 


[1]Tradução da reimpressão, feita com a devida permissão, da revista New York State Journal of Medicine, 1988; 88:463-464, copyright da Sociedade Médica do Estado de Nova Iorque, EUA.

[2]Tradução da reimpressão, feita com a devida permissão da Associação Médica Americana, da revista The Journal of the American Medical Association (JAMA), de 27 de novembro de 1981, Volume 246, N.° 21, páginas 2471, 2472. Copyright 1981, da Associação Médica Americana.

 

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