terça-feira, 14 de maio de 2013

O FUNDAMENTALISMO RELIGIOSO DAS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ: DESASSOCIAÇÃO, ESTIGMA E EXCLUSÃO SOCIAL


Blog “Testemunhas de Jeová”, de autoria de Superdotado Álaze Gabriel.


Autoria:

Estevam Dedalus. Professor de Sociologia da UEPB. Mestrando em Sociologia pela UFPB.


INTRODUÇÃO


No início, o cristianismo era uma seita reformista, pregada de judeu para judeu. A crença de que Jesus Cristo seria o messias profetizado na bíblia hebraica é, certamente, a doutrina de maior controvérsia em relação à teologia judaica tradicional. Apesar de tal desacordo, judaísmo e cristianismo possuíam grandes semelhanças. Os primitivos cristãos se diziam escolhidos por Deus e praticavam circuncisão, vivendo sob rígidos tabus alimentícios. Entre eles o sábado também era considerado um dia sagrado, destinado ao descanso e adoração religiosa. Acreditavam que a história tinha uma finalidade sagrada, e que o mundo foi criado à maneira descrita no livro bíblico de Gêneses.

Não tardaria para que disputas renhidas entre facções religiosas capitulassem algumas dessas regras. Os apóstolos Pedro e Paulo foram inicialmente os dois principais personagens desse conflito. O primeiro, de tendência mais conservadora, defendia que o cristianismo precisava manter-se fiel à sua essência judaica, sem admitir a conversão dos gentios. Paulo, por outro lado, foi o principal responsável pelas mudanças que a religião passaria nesse período. Apostou na disseminação do cristianismo para além do universo judaico. Sua ousadia é um marco na história da religião. Como não rejeitasse completamente as doutrinas judaicas, soube conservar aquilo que parecia mais valioso e se opor as normas mais incômodas da Lei Mosaica, deixando a religião mais atrativa a outros povos. O cristianismo acabaria se expandindo para países vizinhos. Em breve, chegaria à Grécia, principal potência cultural da época. A teologia cristã recebeu enorme influência helênica: a ideia de um Deus onipotente criador dos céus e da terra e a doutrina da justiça divina como recompensa aos virtuosos são heranças desse período.

Daí em diante, um grande salto histórico, que culminaria com o estabelecimento da Igreja Católica Romana e a hegemonia religiosa cristã no Ocidente.


TESTEMUNHAS DE JEOVÁ E FUNDAMENTALISMO


Fundada em 1870 nos Estados Unidos por Charles T. Russell, ex-membro da Igreja Congregacional, As Testemunhas de Jeová se autoproclamam a única religião verdadeira e os autênticos continuadores do cristianismo primitivo – obscurecido, segundo elas, desde o nascimento do catolicismo. Pensam estar em contato direto com

Deus, que são o povo eleito e que suas doutrinas estão realmente certas por se basearem exclusivamente na bíblia. A única fonte de conhecimento indiscutível. Creem na missão de informar à humanidade que o fim do mundo está bastante próximo e na promessa de salvação individual, caso aceitemos seus dogmas adotando os comportamentos exigidos pelo grupo. Estão convencidas que o ano de 1914 e a primeira Grande Guerra Mundial representam o marco da contagem regressiva para os fins dos tempos. Afirmam que a segunda vinda de Cristo aconteceu nesse período e que o mundo se encaminha rapidamente para o tempo da colheita – a destruição dos iníquos e salvação dos piedosos adoradores de Jeová. Em outras palavras, 1914 é entendido como o momento em que Jesus Cristo se tornou rei nos céus. Expulsando definitivamente Satanás e os demônios daqueles domínios, aprisionando-os na alçada terrena. Acreditam ainda que o ser humano tem uma inclinação natural ao erro e que o pecado é hereditário.

O mal seria o resultado do primeiro ato de desobediência a Deus, feito por Adão e Eva, no início da criação do mundo. O ser humano é considerado incapaz de autogoverna-se; qualquer tentativa resultaria em sofrimento e destruição. A única saída seria o estabelecimento de um governo teocrático. Não haveria, portanto, verdades além de suas crenças coletivas – atitude comum aos grupos religiosos fundamentalistas.

Castells (2006) argumenta que a forma fundamentalista do discurso religioso ultrapassa a genuína necessidade humana de conforto para o sofrimento. A singularidade desse conceito estaria ligada a uma das formas mais influentes de construção de identidade no mundo contemporâneo.

Para ser mais exato, creio que seja adequado, para fins de coerência com a coletânea de ensaios reunidos no Projeto "Fundamentalismo em Observação", definir fundamentalismo, em minha concepção, como a construção da identidade coletiva segundo a identificação do comportamento individual e das instituições da sociedade com as normas oriundas da lei de Deus, interpretadas por uma autoridade definida que atua como intermediária entre Deus e a humanidade.(Castells, 2006, p.29)

Por mais que os grupos fundamentalistas se mirem no passado em busca de fontes para orientação, seus esforços visam à intervenção direta no mundo em que vivem. O retorno à tradição é feito de modo seletivo, em que se depreendem os elementos que mais favorecem a unidade e a coesão do grupo. O fundamentalismo não é um fenômeno novo, mas adquiriu contornos interessantes na atualidade. Segundo

Castells (2006), nos Estados Unidos ele pode ser encontrado, pelo menos, desde os federalistas pós-revolucionários como Timothy Dwight. Entre as concepções essenciais do fundamentalismo cristão estão a crença na infalibilidade da Bíblia como revelação divina; a fé no iminente retorno de Cristo à Terra; e a ideia de que a salvação individual é unicamente possível por meio da fé, como também pela prática irrestrita dos ensinamentos de sua religião. Mas esses dogmas são reinterpretados de maneiras diferentes, ao passo que estão incorporados a distintas variações teológicas. Castells (2006) observa o fato de existirem diferenças importantes entre as correntes fundamentalistas pentecostais e carismáticas, influenciadas por doutrinas pré e pós-milenaristas, e as tendências pietistas e ativistas. O que representaria, então, um desafio à investigação sociológica. Estaria no imo do cristianismo a noção de conversão, ou seja, o pensamento de que os homens como seres pecadores podem lograr a vida eterna por meio da absolvição dos seus pecados, pela simples aceitação da fé. A conversão representaria o renascimento do homem, por permitir uma “religação com o sagrado”. É a base para a construção de uma identidade, a partir de concepções políticas e sociais que buscam reafirmar valores tradicionais, como o patriarcalismo, através da revitalização da instituição familiar.

Desse modo, defendem a superioridade dos homens em relações às mulheres, a sacralidade matrimonial e a submissão dos filhos frente à autoridade paterna. Sendo a família responsável por educar os filhos com austeridade e orientá-los a defenestrar sua condição pecaminosa – que carregam desde o nascimento. Nota-se também uma clara obsessão pelo controle da sexualidade, algo bastante comum às Testemunhas de Jeová. Vejamos o comentário de Castells:

Na verdade, a canalização da sexualidade agressiva masculina em um casamento bem-sucedido é essencial para a sociedade, tanto para o controle da violência quanto pelo fato de ser a fonte da "ética protestante do trabalho", e, consequentemente, da produtividade econômica. Nessa visão, a sublimação sexual constitui o fundamento da civilização. (Castells, 2006, p.40)

De qualquer maneira, Castells (2006) lembra que os ideais fundamentalistas naturalmente se esbarram em forças e interesses contrários ao Estado, na sociedade civil e na mídia, ficando impossível de ser realizados plenamente. Ativistas do movimento feminista são demonizadas e encaradas como grandes inimigas. Se o fim é iminente, a tarefa deve ser preparar a sociedade para o Armagedom. Se este é o momento decisivo, qualquer passo em falso pode ser fatal. É preciso, então, expurgar do mundo toda impiedade moral. Castells (2006) afirma que não haveria nenhuma ligação direta entre as aspirações fundamentalistas e os seus interesses de classe. O fenômeno seria de natureza moral.

A revolta fundamentalista, segundo essa perspectiva, está intimamente ligada à desintegração do patriarcalismo e aos efeitos da globalização. É de tal modo, a tentativa de se restabelecer antigas formas de organização social. Reação desesperada contra viver num mundo onde as antigas formas de associação parecem obsoletas. Por isso, as questões morais se sobrepõem à razão, negando-se qualquer forma de entendimento diferente da realidade. O fundamentalismo se torna uma ideologia perigosa na medida em que aponta para a existência de uma única verdade possível, impedindo o diálogo racional, negando a pluralidade, além de rejeitar provas e argumentações científicas apenas por serem contrárias ao seu próprio interesse político e moral.

Para uma melhor compreensão das visões de mundo das Testemunhas de Jeová é indispensável correlacioná-las a contextos históricos específicos, deslocando-as do campo das interpretações metafísicas. Partindo do pressuposto da sociologia do conhecimento, assim como pensava Mannheim, que determinados modos de pensamento não podem ser entendidos, enquanto suas origens sociais permanecerem obscuras.


TESTEMUNHAS DE JEOVÁ, DESASSOCIAÇÃO E DOUTRINA


As Testemunhas de Jeová seguem com ascetismo espartano as doutrinas da Igreja. São árduas defensoras da endogamia e só aceitam o divórcio por dois motivos: adultério ou morte. Rejeitam transfusão de sangue. O namoro é permitido somente aos jovens que alcançaram a maioridade; tem como finalidade o casamento e obedece a normas rígidas. Como o desejo sexual pode ser considerado pecado, é frequentemente reprimido. Os dirigentes da Organização costumam ser bastante impiedosos com os casos de “fornicação”, que amiúde resultam em expulsão da igreja. É comum em determinadas congregações que o número de mulheres seja bastante desproporcional ao de homens, o que torna elevadíssimo o número de moças solteiras. A solução prática adotada por muitas delas é tentar a sorte em outra congregação, às vezes desobedecer à orientação oficial e casar-se com uma pessoa externa à religião – com a esperança de que um dia o companheiro se converta. Situações como essa terminam provocando graves censuras ou expulsão da igreja.

A irmã Marta fala sobre a dificuldade de conseguir casamento:



Tem muitas mulheres na congregação. Quando batemos nas portas, no serviço de campo, quase sempre são elas que atendem e se interessam mais pela conversa. Por quê? Pela proteção dos filhos, a esperança de um mundo melhor... É muito difícil um homem gostar de primeira... Geralmente eles vão através da esposa, depois que percebem a sua mudança. É ainda mais difícil rapazes serem convertidos. A maioria dos jovens da congregação são filhos de pais Testemunhas de Jeová. Por isso as meninas ficam sem namorados... Há disputas entre as mulheres. Alguns homens chegam a esnobar dizendo: “essa é feia, aquela outra lá é magra demais”. É difícil, muito difícil, muito difícil mesmo casar! Trinta para cada dez homens, a maioria deles já comprometida. Algumas com seus trinta e poucos anos e nunca conseguiram um namorado!


O controle do comportamento não constitui tarefa exclusiva dos dirigentes congregacionais. Primeiramente. Os membros da religião estão convictos de que Deus vigia os rincões de nossa alma. O que só aumenta a preocupação com o autocontrole emocional. É comum que membros da religião escrevam cartas aos dirigentes pedindo esclarecimentos sobre com devem se comportar, revelando temores em cometer algum pecado. Não é à toa que as Testemunhas se vejam sob a sensação de vigilância total. Os métodos de controle estão relacionados tanto à exegese bíblica, como a questões de vida prática. A fofoca é um dos instrumentos informais mais importantes nesse processo.

A irmã Elisabete comenta sobre as fofocas durante o trabalho de pregação:



O campo é o local predileto pra tagarelar. Os irmãos vão parando de casa em casa e fofocando. Eu descobri que estavam falando de mim no campo... Existe muita fofoca, a fofoca é grande. Os anciões falam: “cuidado com a tagarelice!”, mas lá é o que mais tem. Você dá as costas e é logo malhado. Dificilmente eu vejo alguém elogiando...


Segundo Goffman (2010), um ato pode ser apropriado ou não apenas em referência ao juízo de um determinado grupo, com a ressalva de que, no menor e mais coeso deles, pode existir dúvidas quanto ao melhor modo de agir. O relato abaixo de Raymond Franz – ex-membro do Corpo Governante da Igreja – ilustra bem a tristeza e a incredulidade de um homem, sexualmente impotente, com a decisão da Igreja em proibir a prática de sexo oral:

Uma dessas pessoas que havia ficado impotente dessa maneira, havia durante os anos seguintes conseguido realizar sua função sexual por um dos meios agora condenados pela organização. Ele disse que, antes da decisão do Corpo Governante, fora capaz de deixar de sentir-se como meio-homem porque ainda conseguia satisfazer a sua esposa. Agora, ele escrevia dizendo que não podia ver nenhuma prova para a posição adotada pela revista A Sentinela, mas que sua esposa se sentia na obrigação de obedecer e, como ele a amava, acedeu. Disse que sabia que ele era o mesmo de antes, embora estivesse emocionalmente desmoronado, visto temer que seu casamento fosse ficar seriamente afetado. Implorou que lhe informassem se não havia uma “brecha” na vontade de Deus que lhe permitisse o prazer de satisfazer a sua esposa. (Franz, 2008, p. 62).

Em segundo lugar, As testemunhas de Jeová são incentivadas a informar casos de desvios de normas morais. A punição máxima que podem receber é a desassociação, isto é, o banimento do convívio social com o grupo e a perda dos privilégios religiosos.

Segundo o irmão Caio, o anúncio da desassociação é feito publicamente durante as reuniões congregacionais:


“De agora em diante _______ não é mais nosso irmão’. Todo mundo a partir desse momento passa a não falar mais com ele, que sai cabisbaixo. Dificilmente volta no outro dia ou na outra semana. Passa um mês... Vai voltando devagarzinho. Quando retorna senta nos lugares mais reservados, lá atrás. Nunca na frente, sempre atrás, sempre no canto, pra que ninguém fique muito próximo. Se, por acaso, ninguém souber que você é uma pessoa desassociada é sua obrigação contar”.


Muitas dessas pessoas dedicaram boa parte de sua vida à Igreja e tem sua rede de amigos limitada a esse universo social. Na maioria dos casos, os indivíduos desassociados acabam psicologicamente atormentados com a ideia de que serão destruídos no julgamento final. A proibição de conversar com membros efetivos se estende a parentes próximos. Há registros de situações trágicas como suicídio e tentativas, um tanto quanto desesperadas, de reverter a situação através de ações judiciais[1]. A expulsão, no entanto, é passível de ser reconsiderada: basta que o indivíduo participe mudo, por tempo indefinido, das reuniões congregacionais e demonstre sincero arrependimento.



A crença de que a desassociação separa alguém da única organização onde pode ser encontrada a salvação, bem como de amigos e parentes, exerce uma tremenda pressão sobre a pessoa para que se submeta à regra, não importando quão difícil para a pessoa possa ser confessar ou relatar aos anciões. (Franz, 2008, p. 57).


A desassociação é um estigma que envolve sentimentos morais fortemente ligados à crença religiosa e a laços de pertencimento social. É um desvio de normas socialmente estabelecidas, encarado como uma perversão moral. Segundo Elias (2000), compartilhar o carisma coletivo de um determinado grupo implica sujeitar-se a padrões sociais de controle emocional. Do ponto de vista da sociologia figuracional, a compreensão da sociodinâmica do estigma e da exclusão social estaria diretamente relacionada à autoimagem de cada grupo – e à posição dos indivíduos enquanto seus membros. O que faz deste também um problema de sociologia do conhecimento. Sob tal perspectiva, a autoimagem social não é o resultado de um conjunto de opiniões individuais fragmentárias. Certamente não se trata de buscar explicações psicológicas que partam do indivíduo e sejam fulcradas na noção de preconceito. A análise sociológica, por sua vez, deverá interrogar quais condições permitem determinado grupo estigmatizar outro. Desse modo, a questão é a seguinte: por que alguns grupos se autopercebem como inferiores e superiores, se são formados por um conjunto de indivíduos?


FIGURAÇÕES DE PODER, CONTROLE DAS EMOÇÕES E EXCLUSÃO SOCIAL


A tentativa de responder a essa questão nos levará à teoria eliasiana do poder. A dicotomia entre grupos estabelecidos x outsiders é, antes de tudo, uma correlação de forças assimétricas que pode variar de acordo com as figurações sociais. Quanto maior a distância entre os níveis de poder, maior será a capacidade de dominação de um grupo sobre outro. Para Elias (2008) o poder é uma característica estrutural das relações humanas. De todas elas, sem exceção. É imaginação pueril a ideia de que poderíamos adquiri-lo como a um objeto mágico; reduzi-lo apenas a aspectos legais ou questões de soberania política. O poder é por sua natureza relacional. Pode ser observado cotidianamente nas mais diversas situações. Quando uma criança chora por comida e é atendida por seus pais, faz valer sua capacidade de poder sobre eles. Isso acontece na medida em que lhe atribuem valor específico. Os pais bem que poderiam abandonar a criança à própria sorte, mas quase nunca agem assim. Até mesmo numa relação de extrema desvantagem, como a que ocorre entre senhor e escravo, existe algum grau de dependência mútua. Geralmente, não nos damos conta de que as relações de amizade também desempenham papel importante como mecanismo de controle social. Os laços afetivos exercem poderosa influência sobre nós.

O poder existirá sempre quando houver algum tipo de interdependência funcional. É a partir daí que Elias (2008) propõe a construção de modelos de “jogos de competição”, que tornem visíveis as diversas configurações de poder. A sua ideia é criar um mecanismo capaz de analisar o grau de “força relativa dos diferentes jogadores” –sem apelar para noções absolutas. Se o poder é uma relação, logo a força de cada jogador estará sujeita a variações de acordo com a força de seu respectivo oponente. Na relação entre senhor e escravo, observamos um grande desequilíbrio na balança de poder. Nesses casos as chances de que A controlasse as jogadas de B são muito superiores à possibilidade contrária. Situações onde o equilíbrio de poder é exageradamente desproporcional a capacidade de dominação A > B cresce em proporção. É possível, dessa maneira, que o jogador mais forte exerça um arbítrio maior sobre as jogadas do adversário e sobre o próprio jogo. É importante perceber que nem todas as figurações obedecem a essa mesma arquitetura. Podem ocorrer diferentes arranjos nas configurações de poder, além disso, uma balança estará sujeita a reequilíbrio. Numa disposição bipolar é mais fácil para que um habilidoso jogador detenha maior capacidade de controle sobre seu adversário; porém, os jogos poderão adquirir vários níveis e número indefinido de participantes.

Na medida em que as redes de interdependência se tornam mais complexas, fica mais difícil para alguém individualmente dominar e orientar o jogo. Essa nova teia de jogadores parecerá ter vida própria, independente de nossos interesses particulares. Sem dúvida o aumento excessivo de participantes fará o jogo impossível de ser controlado.

Avaliações individuais seguras parecerão cada vez mais difíceis de ser elaboradas. Elias (2008) acredita que tal situação tende a produzir uma desorganização do jogo, ocasionando a sua desintegração ou a repartição em grupos menores. A imagem do nós e seu ideal é, assim, o resultado do equilíbrio de forças entre grupos sociais. As testemunhas de Jeová desassociadas estão em posição de desvantagem em relação aos grupos estabelecidos da Igreja. O fato de terem internalizado as normas morais da religião e compartilharem a mesma visão de mundo, permite que se aceitem mais facilmente como pessoas inferiores. O tabu do contato íntimo é sintomático, porque acentua a exclusão social e demonstra o nível de autorregulação interno.

A irmã Fátima relata a dramática situação dos desassociados:



É horrível... Muitos desassociados não voltam pela vergonha de se sentir um “dalit”, um intocável. Primeiro porque a pessoa passa invisivelmente, ninguém olha. Um sorriso, qualquer gesto que alguém faça para eles é motivo de repreensão. Mesmo dentro da própria família, por exemplo, se você fosse meu irmão eu não poderia estar incentivando: “bora rapaz, o fim ta chegando!”. Nos dizem que temos que ficar calados e esperar que você mesmo tenha o desejo de voltar. Então, fica mais difícil ainda. A pessoa volta pelo medo do Armagedom, não pelo amor a Deus.


Esse artifício impede qualquer tentativa de diálogo entre associados x desassociados, impõe o isolamento social, aumentando a sensação de culpa por terem cometido “pecado”. A crença na existência do pecado é fundamental ao cristianismo, porque iguala os seres humanos a uma condição comum de inferioridade diante de Deus. A noção de pecado, assim como a doutrina cristã do livre-arbítrio, é indispensável para a existência de um sistema social de classificação de pessoas “boas” e “iníquas”. A aceitação da ideia de livre-arbítrio é tão importante que, se não a aceitássemos, não poderíamos imputar erro a ninguém.

Numa perspectiva sociológica, a ideia de pecado funciona como mecanismo de controle baseado na relação castigo x recompensa[2]. Está associada às categorias de vergonha e culpa. Em alguns casos, quando indivíduos violam determinadas regras morais, são repreendidos ou ridicularizados publicamente. Esse processo é semelhante ao que produz o sentimento de vergonha. Certos grupos sociais reagem de modo a repreender o indivíduo desviante, tentando controlar suas futuras ações. O sentimento de vergonha também costuma atingir parentes e amigos próximos. Os efeitos da culpa operam mais no universo psicológico. As pessoas que a sentem se veem, intimamente, como infratores de códigos morais que internalizaram através de processos de socialização. Assim, o próprio individuo é responsável por admoestar-se. A sua consciência condena a ação.

O irmão Manoel comenta sobre as interrogações feitas pelos anciões em casos de desvio, e a vergonha de se sentir um pecador:



Quando os anciões conversam com alguém sobre um pecado eles perguntam: “é assim que Jeová quer a organização dele? Ele quer é limpeza! Ele quer é ordem!”. Não usam o próprio nome, mas o de Jeová. Então, como é que você se sente? Se sente a pior pessoa do mundo. Um pecador. Quando nós os vemos [os anciões] sentimos vontade de desviar o caminho. Tem o caso de uma irmã que nem desassociada é, mas desvia o caminho de vergonha e ainda passa de cabeça baixa. Eles ficam tentando investigar a sua vida em busca de motivos para lhe desassociar.


Elias (1994) argumenta que a partir do século XVI processos de racionalização deram contornos mais vivos ao sentimento de vergonha e repugnância. Ele chama nossa atenção para sua vinculação com o temor que as pessoas sentem da degradação social. É interessante que o indivíduo que se encontra sob tais circunstâncias não poderá utilizar meios físicos, nem outros expedientes diretos de ataque para contornar a situação.

Estará, todavia, frente à superioridade alheia, que também não será, necessariamente, resultado de alguma espécie de superioridade física. A eficácia prática da vergonha se dá, então, porque as pessoas envolvidas internalizaram os mesmos padrões morais. Uns dos traços característicos desse sentimento é o seu caráter oculto e a não expressão através de meios violentos. Isto faz do processo civilizador condição indispensável ao seu desenvolvimento, por diminuir o medo de ataques físicos entre os seres humanos, assim como o estabelecimento do monopólio legítimo da violência pelo Estado.

A racionalização e o avanço dos patamares da vergonha e da repugnância expressam uma diminuição do medo físico direto a outras pessoas e uma consolidação das ansiedades interiores automatizadas, das compulsões que o indivíduo agora exerce sobre si. (Elias,1994, p. 243).

Como vemos, o confronto com a opinião social predominante se trava também no interior da personalidade humana:



É um conflito dentro de sua própria personalidade. Ele mesmo se reconhece como inferior. Teme perder o amor e o respeito dos demais, a quem atribui ou atribuiu valor. A atitude dessas pessoas precipitou nele uma atitude dentro de si que ele automaticamente adota em relação a si mesmo. É isso o que o torna tão impotente diante de gestos de superioridade de outras pessoas que, de alguma maneira, deflagram nele esse automatismo. (Elias, 1994, p. 242).


REEQUILÍBRIOS NA BALANÇA DE PODER


A sensação de inferioridade, o medo e a vergonha podem diminuir ou até desaparecer na medida em que um grupo marginalizado consegue criar nova imagem e ideal coletivo. Para que isso ocorra, é preciso contrabalancear as assimetrias de poder. A figuração estabelecidos x outsiders não é estática, o que torna possível que novos arranjos promovam a ascensão de grupos excluídos e a decadência dos dominantes.

Enquanto as antigas normas e, de modo mais geral, as concepções de mundo internalizadas forem consideradas verdadeiras, a tendência será de que a desigualdade permaneça. A segregação racial nos Estados Unidos, entre os séculos XVII e XX, é uma demonstração histórica de como grupos outsiders – nesse caso afroamericanos – podem reverter o processo de estigmatização e exclusão social. A discriminação racial norteamericana era politicamente institucionalizada; até 1967 ainda vigorava em alguns

Estados a lei de antimiscigenação, criada no século XVII, que impedia o casamento interracial. As leis de Jim Crow, de 1876 a 1965, impediam que negros e brancos frequentassem as mesmas escolas e determinavam que os locais públicos reservassem espaços diferenciados para essas pessoas. Graças a lutas encarniçadas por direitos civis, boa organização coletiva e ideias políticas que valorizavam a cultura negra, essas leis vieram abaixo. Elias (2000) afirma que classificações raciais ou étnicas são características de atos ideológicos de evitação. Funcionariam como um modo de desviar a atenção para atributos secundários, escamoteando a visão para questões mais importantes relacionadas à dinâmica de poder e exclusão social de posições influentes.

Independentemente – enfatiza Elias –, da cor da pele ou de qualquer outra característica física, tal relação estaria ligada a mecanismos que permitem maior vantagem de poder e oportunidades, capazes de criar limitações ao acesso desses mesmos recursos aos dominados. Assim, a ideia de “preconceito racial” seria insuficiente para explicar o fenômeno segregacionista estadunidense.

Do mesmo modo, a explicação teológica das Testemunhas de Jeová para a desassociação esconderia interesses e, sobretudo, a dinâmica de poder que opera sob tais circunstâncias. Ao longo de sua história a Igreja passou por disputas políticas importantes, entre elas brigas pelo controle político da organização que resultariam no cisma de 1917; e o processo de mudança para o nome atual em 1923. Antes se chamavam Estudantes da Bíblia. Além disso, muitas de suas previsões apocalípticas fracassaram, ocasionando a saída voluntária de vários membros. A cada novo conflito interno, novas ondas de confusão se geravam entre líderes e seus seguidores. Esses períodos são, naturalmente, os mais propícios ao ceticismo e à dispersão religiosa.

Muitas pessoas foram desassociadas por questionar a certeza e a autoridade do Corpo Governante em profetizar. Pessoas desassociadas, que não mais aceitam a autoridade da Igreja, estão se organizando ao redor do mundo em grupos de discussão político-religiosa e de crítica à Organização[3]3. Frequentemente questionam aspectos fundamentais da doutrina, apontam irregularidades administrativas e servem de apoio a outros descontentes. Esses grupos não toleram o estigma que a sua antiga religião os imputa; procuram construir nova autoimagem se apresentando como pessoas críticas que despertaram de um “sono dogmático”. Sua capacidade de organização e crítica parece, em certo ponto, ameaçadora ao poder da Igreja. A orientação religiosa é a de que os irmãos façam pouco, ou nenhum uso, da rede de computadores mundial. A leitura de textos, não oficiais, que discutam questões relacionadas à doutrina ou à critica religiosa, é veementemente proibida. Consideram apóstatas as pessoas que leem ou escrevem tais textos, e é outro grave motivo para desassociação.

A organização política dos desassociados e a utilização de meios de comunicação como a internet deram maior visibilidade à crítica contra as Testemunhas de Jeová, impondo novos direcionamentos à política da Igreja. Muitas denúncias de pedofilia, violência contra as mulheres, tortura psicológica, discriminação e intolerância religiosa se tornaram públicas através da rede mundial de computadores. Os dirigentes da Igreja sempre estiveram bastante empenhados em restringir o acesso a fontes de informação diferenciadas. Fazem sempre advertência sobre as consequências nocivas da televisão e da leitura de livros não canônicos. Além disso, não recomendam que as pessoas façam cursos superiores e demonizam o estudo da Filosofia. Essas imposições podem ser explicadas, com efeito, a partir da tentativa de manter uma visão de mundo coesa, garantindo assim a unidade e o controle social. É tarefa bastante complicada a manutenção dessas significações nas sociedades contemporâneas, em que coexistem múltiplas formas de atribuição de valores e sentido.

Para Berger (1995), a linguagem é capaz de transcender a realidade cotidiana e construir sistemas de representações simbólicas monumentais. A religião, a ciência e a filosofia seriam as formas de representações simbólicas mais importantes da humanidade. A linguagem não fabricaria apenas símbolos abstraídos da experiência, mas, dialeticamente, seria o mecanismo que os objetivizam na realidade. Berger (1983) acredita, então, que o estudo minucioso dos sistemas de significação revelaria a visão assustadora de como esses mecanismos oferecem explicações totalizantes do real – inclusive de sistemas simbólicos alternativos. De tal maneira, a adoção de certo ponto de vista condicionaria a percepção individual. É possível, porém, que as pessoas alternem suas visões e é justamente isso que as Testemunhas de Jeová procurariam evitar.

Em níveis inferiores de sofisticação, haverá também vários meios empregados para eliminar perguntas que pudessem ameaçar a fidelidade doindivíduo ao sistema, meios que se pode ver em funcionamento nos malabarismos dialéticos até mesmos de grupos relativamente pouco sofisticados como as Testemunhas de Jeová. (Berger, 1983, p. 63).


CONCLUSÃO


Como podemos observar, a dominação das Testemunhas de Jeová está ligada à internalização de valores morais e a uma cosmovisão religiosa específica. O desvio de regras socialmente aceitas pelo grupo resultam, quase sempre, em sanções que podem levar à desassociação – ao estigma e à exclusão social –, acompanhadas do sentimento de culpa e inferioridade moral. Numa perspectiva sociológica figuracional, a sociodinâmica desse fenômeno não pode ser explicada a partir de pressupostos de natureza metafísica, ou seja, de seus fundamentos teológicos. Tampouco através de análises psicológicas individuais que privilegiem conceitos como preconceito e antipatia.

A teoria eliasiana do poder é, portanto, uma chave de leitura que permitiria esclarecermos a sociogênese e a sociodinâmica do processo de exclusão. O poder é de natureza relacional; depende de circunstâncias estruturais de interdependência para existir. Por isso, uma relação estabelecidos x outsiders não é estática. Variações podem ocorrer na medida que surjam novos ordenamentos no equilíbrio de forças. Grupos dominados poderão ascender a posições privilegiadas se forem capazes de aumentar sua capacidade de poder. Tal movimento será acompanhado de uma tentativa de redefinição da autoimagem. As associações políticas dos desassociados funcionariam, assim, como mecanismo de reequilíbrio na balança de poder com a Igreja. Um estudo mais detalhado poderia fornecer conhecimentos mais abrangentes a respeito dos efeitos práticos da organização de tais grupos. As teorias de Elias sobre o controle das emoções, por outro lado, poderiam ser bastante úteis para uma futura investigação que se detivesse no funcionamento dos mecanismos de dominação e nos rituais de retorno dos desassociados à religião.


BIBLIOGRAFIA


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[1]Em 2010, no Brasil, o caso de desassociação do funcionário público Sebastião Ramos ganhou destaque na imprensa nacional depois que sua denúncia de discriminação e exclusão social, contra as Testemunhas de Jeová, recebeu parecer favorável do Ministério Público.

[2]Sobre esta discussão, recomendaria a leitura do livro Ética e Política na Sociedade Humana de Bertrand Russell.

[3]No Brasil existe um grupo na Internet chamado Testemunhas de Jeová Livres que mantém um fórum de discussões, além de comunidades no Orkut.