Blog “Testemunhas de Jeová”, de autoria
de Superdotado Álaze Gabriel.
Autoria:
Estevam
Dedalus. Professor de Sociologia da UEPB. Mestrando em Sociologia pela UFPB.
INTRODUÇÃO
No
início, o cristianismo era uma seita reformista, pregada de judeu para judeu. A
crença de que Jesus Cristo seria o messias profetizado na bíblia hebraica é, certamente,
a doutrina de maior controvérsia em relação à teologia judaica tradicional. Apesar
de tal desacordo, judaísmo e cristianismo possuíam grandes semelhanças. Os primitivos
cristãos se diziam escolhidos por Deus e praticavam circuncisão, vivendo sob rígidos
tabus alimentícios. Entre eles o sábado também era considerado um dia sagrado, destinado
ao descanso e adoração religiosa. Acreditavam que a história tinha uma finalidade
sagrada, e que o mundo foi criado à maneira descrita no livro bíblico de Gêneses.
Não
tardaria para que disputas renhidas entre facções religiosas capitulassem algumas
dessas regras. Os apóstolos Pedro e Paulo foram inicialmente os dois principais
personagens desse conflito. O primeiro, de tendência mais conservadora,
defendia que o cristianismo precisava manter-se fiel à sua essência judaica,
sem admitir a conversão dos gentios. Paulo, por outro lado, foi o principal
responsável pelas mudanças que a religião passaria nesse período. Apostou na
disseminação do cristianismo para além do universo judaico. Sua ousadia é um
marco na história da religião. Como não rejeitasse completamente as doutrinas
judaicas, soube conservar aquilo que parecia mais valioso e se opor as normas
mais incômodas da Lei Mosaica, deixando a religião mais atrativa a outros
povos. O cristianismo acabaria se expandindo para países vizinhos. Em breve, chegaria
à Grécia, principal potência cultural da época. A teologia cristã recebeu
enorme influência helênica: a ideia de um Deus onipotente criador dos céus e da
terra e a doutrina da justiça divina como recompensa aos virtuosos são heranças
desse período.
Daí
em diante, um grande salto histórico, que culminaria com o estabelecimento da Igreja
Católica Romana e a hegemonia religiosa cristã no Ocidente.
TESTEMUNHAS
DE JEOVÁ E FUNDAMENTALISMO
Fundada
em 1870 nos Estados Unidos por Charles T. Russell, ex-membro da Igreja
Congregacional, As Testemunhas de Jeová se autoproclamam a única religião verdadeira
e os autênticos continuadores do cristianismo primitivo – obscurecido, segundo
elas, desde o nascimento do catolicismo. Pensam estar em contato direto com
Deus,
que são o povo eleito e que suas doutrinas estão realmente certas por se
basearem exclusivamente na bíblia. A única fonte de conhecimento indiscutível.
Creem na missão de informar à humanidade que o fim do mundo está bastante
próximo e na promessa de salvação individual, caso aceitemos seus dogmas
adotando os comportamentos exigidos pelo grupo. Estão convencidas que o ano de
1914 e a primeira Grande Guerra Mundial representam o marco da contagem
regressiva para os fins dos tempos. Afirmam que a segunda vinda de Cristo
aconteceu nesse período e que o mundo se encaminha rapidamente para o tempo da
colheita – a destruição dos iníquos e salvação dos piedosos adoradores de
Jeová. Em outras palavras, 1914 é entendido como o momento em que Jesus Cristo
se tornou rei nos céus. Expulsando definitivamente Satanás e os demônios
daqueles domínios, aprisionando-os na alçada terrena. Acreditam ainda que o ser
humano tem uma inclinação natural ao erro e que o pecado é hereditário.
O
mal seria o resultado do primeiro ato de desobediência a Deus, feito por Adão e
Eva, no início da criação do mundo. O ser humano é considerado incapaz de
autogoverna-se; qualquer tentativa resultaria em sofrimento e destruição. A
única saída seria o estabelecimento de um governo teocrático. Não haveria,
portanto, verdades além de suas crenças coletivas – atitude comum aos grupos
religiosos fundamentalistas.
Castells
(2006) argumenta que a forma fundamentalista do discurso religioso ultrapassa a
genuína necessidade humana de conforto para o sofrimento. A singularidade desse
conceito estaria ligada a uma das formas mais influentes de construção de
identidade no mundo contemporâneo.
Para
ser mais exato, creio que seja adequado, para fins de coerência com a coletânea
de ensaios reunidos no Projeto "Fundamentalismo em Observação",
definir fundamentalismo, em minha concepção, como a construção da
identidade coletiva segundo a identificação do comportamento individual e das
instituições da sociedade com as normas oriundas da lei de Deus, interpretadas
por uma autoridade definida que atua como intermediária entre Deus e a
humanidade.(Castells, 2006, p.29)
Por
mais que os grupos fundamentalistas se mirem no passado em busca de fontes para
orientação, seus esforços visam à intervenção direta no mundo em que vivem. O
retorno à tradição é feito de modo seletivo, em que se depreendem os elementos
que mais favorecem a unidade e a coesão do grupo. O fundamentalismo não é um
fenômeno novo, mas adquiriu contornos interessantes na atualidade. Segundo
Castells
(2006), nos Estados Unidos ele pode ser encontrado, pelo menos, desde os federalistas
pós-revolucionários como Timothy Dwight. Entre as concepções essenciais do
fundamentalismo cristão estão a crença na infalibilidade da Bíblia como revelação
divina; a fé no iminente retorno de Cristo à Terra; e a ideia de que a salvação
individual é unicamente possível por meio da fé, como também pela prática
irrestrita dos ensinamentos de sua religião. Mas esses dogmas são reinterpretados
de maneiras diferentes, ao passo que estão incorporados a distintas variações
teológicas. Castells (2006) observa o fato de existirem diferenças importantes entre
as correntes fundamentalistas pentecostais e carismáticas, influenciadas por
doutrinas pré e pós-milenaristas, e as tendências pietistas e ativistas. O que
representaria, então, um desafio à investigação sociológica. Estaria no imo do
cristianismo a noção de conversão, ou seja, o pensamento de que os homens como
seres pecadores podem lograr a vida eterna por meio da absolvição dos seus
pecados, pela simples aceitação da fé. A conversão representaria o renascimento
do homem, por permitir uma “religação com o sagrado”. É a base para a construção
de uma identidade, a partir de concepções políticas e sociais que buscam
reafirmar valores tradicionais, como o patriarcalismo, através da revitalização
da instituição familiar.
Desse
modo, defendem a superioridade dos homens em relações às mulheres, a
sacralidade matrimonial e a submissão dos filhos frente à autoridade paterna.
Sendo a família responsável por educar os filhos com austeridade e orientá-los
a defenestrar sua condição pecaminosa – que carregam desde o nascimento.
Nota-se também uma clara obsessão pelo controle da sexualidade, algo bastante
comum às Testemunhas de Jeová. Vejamos o comentário de Castells:
Na
verdade, a canalização da sexualidade agressiva masculina em um casamento bem-sucedido
é essencial para a sociedade, tanto para o controle da violência quanto pelo fato
de ser a fonte da "ética protestante do trabalho", e,
consequentemente, da produtividade econômica. Nessa visão, a sublimação sexual
constitui o fundamento da civilização. (Castells, 2006, p.40)
De
qualquer maneira, Castells (2006) lembra que os ideais fundamentalistas naturalmente
se esbarram em forças e interesses contrários ao Estado, na sociedade civil e
na mídia, ficando impossível de ser realizados plenamente. Ativistas do
movimento feminista são demonizadas e encaradas como grandes inimigas. Se o fim
é iminente, a tarefa deve ser preparar a sociedade para o Armagedom. Se este é
o momento decisivo, qualquer passo em falso pode ser fatal. É preciso, então,
expurgar do mundo toda impiedade moral. Castells (2006) afirma que não haveria
nenhuma ligação direta entre as aspirações fundamentalistas e os seus
interesses de classe. O fenômeno seria de natureza moral.
A
revolta fundamentalista, segundo essa perspectiva, está intimamente ligada à desintegração
do patriarcalismo e aos efeitos da globalização. É de tal modo, a tentativa de
se restabelecer antigas formas de organização social. Reação desesperada contra
viver num mundo onde as antigas formas de associação parecem obsoletas. Por
isso, as questões morais se sobrepõem à razão, negando-se qualquer forma de
entendimento diferente da realidade. O fundamentalismo se torna uma ideologia
perigosa na medida em que aponta para a existência de uma única verdade
possível, impedindo o diálogo racional, negando a pluralidade, além de rejeitar
provas e argumentações científicas apenas por serem contrárias ao seu próprio
interesse político e moral.
Para
uma melhor compreensão das visões de mundo das Testemunhas de Jeová é indispensável
correlacioná-las a contextos históricos específicos, deslocando-as do campo das
interpretações metafísicas. Partindo do pressuposto da sociologia do conhecimento,
assim como pensava Mannheim, que determinados modos de pensamento não podem ser
entendidos, enquanto suas origens sociais permanecerem obscuras.
TESTEMUNHAS
DE JEOVÁ, DESASSOCIAÇÃO E DOUTRINA
As
Testemunhas de Jeová seguem com ascetismo espartano as doutrinas da Igreja. São
árduas defensoras da endogamia e só aceitam o divórcio por dois motivos: adultério
ou morte. Rejeitam transfusão de sangue. O namoro é permitido somente aos jovens
que alcançaram a maioridade; tem como finalidade o casamento e obedece a normas
rígidas. Como o desejo sexual pode ser considerado pecado, é frequentemente reprimido.
Os dirigentes da Organização costumam ser bastante impiedosos com os casos de “fornicação”,
que amiúde resultam em expulsão da igreja. É comum em determinadas congregações
que o número de mulheres seja bastante desproporcional ao de homens, o que
torna elevadíssimo o número de moças solteiras. A solução prática adotada por muitas
delas é tentar a sorte em outra congregação, às vezes desobedecer à orientação
oficial e casar-se com uma pessoa externa à religião – com a esperança de que
um dia o companheiro se converta. Situações como essa terminam provocando graves
censuras ou expulsão da igreja.
A
irmã Marta fala sobre a dificuldade de conseguir casamento:
Tem
muitas mulheres na congregação. Quando batemos nas portas, no serviço de campo,
quase sempre são elas que atendem e se interessam mais pela conversa. Por quê?
Pela proteção dos filhos, a esperança de um mundo melhor... É muito difícil um
homem gostar de primeira... Geralmente eles vão através da esposa, depois que
percebem a sua mudança. É ainda mais difícil rapazes serem convertidos. A
maioria dos jovens da congregação são filhos de pais Testemunhas de Jeová. Por
isso as meninas ficam sem namorados... Há disputas entre as mulheres. Alguns
homens chegam a esnobar dizendo: “essa é feia, aquela outra lá é magra demais”.
É difícil, muito difícil, muito difícil mesmo casar! Trinta para cada dez
homens, a maioria deles já comprometida. Algumas com seus trinta e poucos anos
e nunca conseguiram um namorado!
O
controle do comportamento não constitui tarefa exclusiva dos dirigentes congregacionais.
Primeiramente. Os membros da religião estão convictos de que Deus vigia os
rincões de nossa alma. O que só aumenta a preocupação com o autocontrole emocional.
É comum que membros da religião escrevam cartas aos dirigentes pedindo esclarecimentos
sobre com devem se comportar, revelando temores em cometer algum pecado. Não é
à toa que as Testemunhas se vejam sob a sensação de vigilância total. Os métodos
de controle estão relacionados tanto à exegese bíblica, como a questões de vida
prática. A fofoca é um dos instrumentos informais mais importantes nesse
processo.
A
irmã Elisabete comenta sobre as fofocas durante o trabalho de pregação:
O
campo é o local predileto pra tagarelar. Os irmãos vão parando de casa em casa
e fofocando. Eu descobri que estavam falando de mim no campo... Existe muita
fofoca, a fofoca é grande. Os anciões falam: “cuidado com a tagarelice!”, mas
lá é o que mais tem. Você dá as costas e é logo malhado. Dificilmente eu vejo
alguém elogiando...
Segundo
Goffman (2010), um ato pode ser apropriado ou não apenas em referência ao juízo
de um determinado grupo, com a ressalva de que, no menor e mais coeso deles,
pode existir dúvidas quanto ao melhor modo de agir. O relato abaixo de Raymond
Franz – ex-membro do Corpo Governante da Igreja – ilustra bem a tristeza e a incredulidade
de um homem, sexualmente impotente, com a decisão da Igreja em proibir a
prática de sexo oral:
Uma
dessas pessoas que havia ficado impotente dessa maneira, havia durante os anos
seguintes conseguido realizar sua função sexual por um dos meios agora condenados
pela organização. Ele disse que, antes da decisão do Corpo Governante, fora
capaz de deixar de sentir-se como meio-homem porque ainda conseguia satisfazer
a sua esposa. Agora, ele escrevia dizendo que não podia ver nenhuma prova para
a posição adotada pela revista A Sentinela, mas que sua esposa se sentia na
obrigação de obedecer e, como ele a amava, acedeu. Disse que sabia que ele era
o mesmo de antes, embora estivesse emocionalmente desmoronado, visto temer que
seu casamento fosse ficar seriamente afetado. Implorou que lhe informassem se
não havia uma “brecha” na vontade de Deus que lhe permitisse o prazer de
satisfazer a sua esposa. (Franz, 2008, p. 62).
Em
segundo lugar, As testemunhas de Jeová são incentivadas a informar casos de
desvios de normas morais. A punição máxima que podem receber é a desassociação,
isto é, o banimento do convívio social com o grupo e a perda dos privilégios
religiosos.
Segundo
o irmão Caio, o anúncio da desassociação é feito publicamente durante as reuniões
congregacionais:
“De
agora em diante _______ não é mais nosso irmão’. Todo mundo a partir desse
momento passa a não falar mais com ele, que sai cabisbaixo. Dificilmente volta
no outro dia ou na outra semana. Passa um mês... Vai voltando devagarzinho.
Quando retorna senta nos lugares mais reservados, lá atrás. Nunca na frente,
sempre atrás, sempre no canto, pra que ninguém fique muito próximo. Se, por
acaso, ninguém souber que você é uma pessoa desassociada é sua obrigação contar”.
Muitas
dessas pessoas dedicaram boa parte de sua vida à Igreja e tem sua rede de amigos
limitada a esse universo social. Na maioria dos casos, os indivíduos desassociados
acabam psicologicamente atormentados com a ideia de que serão destruídos no julgamento
final. A proibição de conversar com membros efetivos se estende a parentes
próximos. Há registros de situações trágicas como suicídio e tentativas, um
tanto quanto desesperadas, de reverter a situação através de ações judiciais. A
expulsão, no entanto, é passível de ser reconsiderada: basta que o indivíduo participe
mudo, por tempo indefinido, das reuniões congregacionais e demonstre sincero
arrependimento.
A
crença de que a desassociação separa alguém da única organização onde pode ser
encontrada a salvação, bem como de amigos e parentes, exerce uma tremenda
pressão sobre a pessoa para que se submeta à regra, não importando quão difícil
para a pessoa possa ser confessar ou relatar aos anciões. (Franz, 2008, p. 57).
A
desassociação é um estigma que envolve sentimentos morais fortemente ligados à
crença religiosa e a laços de pertencimento social. É um desvio de normas socialmente
estabelecidas, encarado como uma perversão moral. Segundo Elias (2000), compartilhar
o carisma coletivo de um determinado grupo implica sujeitar-se a padrões sociais
de controle emocional. Do ponto de vista da sociologia figuracional, a compreensão
da sociodinâmica do estigma e da exclusão social estaria diretamente relacionada
à autoimagem de cada grupo – e à posição dos indivíduos enquanto seus membros.
O que faz deste também um problema de sociologia do conhecimento. Sob tal perspectiva,
a autoimagem social não é o resultado de um conjunto de opiniões individuais
fragmentárias. Certamente não se trata de buscar explicações psicológicas que
partam do indivíduo e sejam fulcradas na noção de preconceito. A análise sociológica,
por sua vez, deverá interrogar quais condições permitem determinado grupo
estigmatizar outro. Desse modo, a questão é a seguinte: por que alguns grupos
se autopercebem como inferiores e superiores, se são formados por um conjunto
de indivíduos?
FIGURAÇÕES
DE PODER, CONTROLE DAS EMOÇÕES E EXCLUSÃO SOCIAL
A
tentativa de responder a essa questão nos levará à teoria eliasiana do poder. A
dicotomia entre grupos estabelecidos x outsiders é, antes de tudo, uma
correlação de forças assimétricas que pode variar de acordo com as figurações
sociais. Quanto maior a distância entre os níveis de poder, maior será a
capacidade de dominação de um grupo sobre outro. Para Elias (2008) o poder é
uma característica estrutural das relações humanas. De todas elas, sem exceção.
É imaginação pueril a ideia de que poderíamos adquiri-lo como a um objeto
mágico; reduzi-lo apenas a aspectos legais ou questões de soberania política. O
poder é por sua natureza relacional. Pode ser observado cotidianamente nas mais
diversas situações. Quando uma criança chora por comida e é atendida por seus
pais, faz valer sua capacidade de poder sobre eles. Isso acontece na medida em
que lhe atribuem valor específico. Os pais bem que poderiam abandonar a criança
à própria sorte, mas quase nunca agem assim. Até mesmo numa relação de extrema
desvantagem, como a que ocorre entre senhor e escravo, existe algum grau de dependência
mútua. Geralmente, não nos damos conta de que as relações de amizade também
desempenham papel importante como mecanismo de controle social. Os laços afetivos
exercem poderosa influência sobre nós.
O
poder existirá sempre quando houver algum tipo de interdependência funcional. É
a partir daí que Elias (2008) propõe a construção de modelos de “jogos de competição”,
que tornem visíveis as diversas configurações de poder. A sua ideia é criar um
mecanismo capaz de analisar o grau de “força relativa dos diferentes jogadores”
–sem apelar para noções absolutas. Se o poder é uma relação, logo a força de
cada jogador estará sujeita a variações de acordo com a força de seu respectivo
oponente. Na relação entre senhor e escravo, observamos um grande desequilíbrio
na balança de poder. Nesses casos as chances de que A controlasse as jogadas de B são muito superiores à possibilidade contrária. Situações onde o
equilíbrio de poder é exageradamente desproporcional a capacidade de dominação A > B cresce em proporção. É
possível, dessa maneira, que o jogador mais forte exerça um arbítrio maior sobre
as jogadas do adversário e sobre o próprio jogo. É importante perceber que nem todas
as figurações obedecem a essa mesma arquitetura. Podem ocorrer diferentes arranjos
nas configurações de poder, além disso, uma balança estará sujeita a reequilíbrio.
Numa disposição bipolar é mais fácil para que um habilidoso jogador detenha
maior capacidade de controle sobre seu adversário; porém, os jogos poderão adquirir
vários níveis e número indefinido de participantes.
Na
medida em que as redes de interdependência se tornam mais complexas, fica mais
difícil para alguém individualmente dominar e orientar o jogo. Essa nova teia
de jogadores parecerá ter vida própria, independente de nossos interesses
particulares. Sem dúvida o aumento excessivo de participantes fará o jogo
impossível de ser controlado.
Avaliações
individuais seguras parecerão cada vez mais difíceis de ser elaboradas. Elias (2008)
acredita que tal situação tende a produzir uma desorganização do jogo, ocasionando
a sua desintegração ou a repartição em grupos menores. A imagem do nós e seu
ideal é, assim, o resultado do equilíbrio de forças entre grupos sociais. As
testemunhas de Jeová desassociadas estão em posição de desvantagem em relação
aos grupos estabelecidos da Igreja. O fato de terem internalizado as normas
morais da religião e compartilharem a mesma visão de mundo, permite que se
aceitem mais facilmente como pessoas inferiores. O tabu do contato íntimo é
sintomático, porque acentua a exclusão social e demonstra o nível de autorregulação
interno.
A
irmã Fátima relata a dramática situação dos desassociados:
É
horrível... Muitos desassociados não voltam pela vergonha de se sentir um “dalit”,
um intocável. Primeiro porque a pessoa passa invisivelmente, ninguém olha. Um
sorriso, qualquer gesto que alguém faça para eles é motivo de repreensão. Mesmo
dentro da própria família, por exemplo, se você fosse meu irmão eu não poderia
estar incentivando: “bora rapaz, o fim ta chegando!”. Nos dizem que temos que
ficar calados e esperar que você mesmo tenha o desejo de voltar. Então, fica
mais difícil ainda. A pessoa volta pelo medo do Armagedom, não pelo amor a
Deus.
Esse
artifício impede qualquer tentativa de diálogo entre associados x desassociados,
impõe o isolamento social, aumentando a sensação de culpa por terem cometido “pecado”.
A crença na existência do pecado é fundamental ao cristianismo, porque iguala
os seres humanos a uma condição comum de inferioridade diante de Deus. A noção
de pecado, assim como a doutrina cristã do livre-arbítrio, é indispensável para
a existência de um sistema social de classificação de pessoas “boas” e “iníquas”.
A aceitação da ideia de livre-arbítrio é tão importante que, se não a
aceitássemos, não poderíamos imputar erro a ninguém.
Numa
perspectiva sociológica, a ideia de pecado funciona como mecanismo de controle
baseado na relação castigo x recompensa.
Está associada às categorias de vergonha e culpa. Em alguns casos, quando
indivíduos violam determinadas regras morais, são repreendidos ou
ridicularizados publicamente. Esse processo é semelhante ao que produz o
sentimento de vergonha. Certos grupos sociais reagem de modo a repreender o
indivíduo desviante, tentando controlar suas futuras ações. O sentimento de
vergonha também costuma atingir parentes e amigos próximos. Os efeitos da culpa
operam mais no universo psicológico. As pessoas que a sentem se veem,
intimamente, como infratores de códigos morais que internalizaram através de
processos de socialização. Assim, o próprio individuo é responsável por
admoestar-se. A sua consciência condena a ação.
O
irmão Manoel comenta sobre as interrogações feitas pelos anciões em casos de
desvio, e a vergonha de se sentir um pecador:
Quando
os anciões conversam com alguém sobre um pecado eles perguntam: “é assim que
Jeová quer a organização dele? Ele quer é limpeza! Ele quer é ordem!”. Não usam
o próprio nome, mas o de Jeová. Então, como é que você se sente? Se sente a
pior pessoa do mundo. Um pecador. Quando nós os vemos [os anciões] sentimos
vontade de desviar o caminho. Tem o caso de uma irmã que nem desassociada é,
mas desvia o caminho de vergonha e ainda passa de cabeça baixa. Eles ficam
tentando investigar a sua vida em busca de motivos para lhe desassociar.
Elias
(1994) argumenta que a partir do século XVI processos de racionalização deram
contornos mais vivos ao sentimento de vergonha e repugnância. Ele chama nossa atenção
para sua vinculação com o temor que as pessoas sentem da degradação social. É interessante
que o indivíduo que se encontra sob tais circunstâncias não poderá utilizar meios
físicos, nem outros expedientes diretos de ataque para contornar a situação.
Estará,
todavia, frente à superioridade alheia, que também não será, necessariamente, resultado
de alguma espécie de superioridade física. A eficácia prática da vergonha se dá,
então, porque as pessoas envolvidas internalizaram os mesmos padrões morais.
Uns dos traços característicos desse sentimento é o seu caráter oculto e a não
expressão através de meios violentos. Isto faz do processo civilizador condição
indispensável ao seu desenvolvimento, por diminuir o medo de ataques físicos
entre os seres humanos, assim como o estabelecimento do monopólio legítimo da
violência pelo Estado.
A
racionalização e o avanço dos patamares da vergonha e da repugnância expressam
uma diminuição do medo físico direto a outras pessoas e uma consolidação das
ansiedades interiores automatizadas, das compulsões que o indivíduo agora
exerce sobre si. (Elias,1994, p. 243).
Como
vemos, o confronto com a opinião social predominante se trava também no
interior da personalidade humana:
É
um conflito dentro de sua própria personalidade. Ele mesmo se reconhece como
inferior. Teme perder o amor e o respeito dos demais, a quem atribui ou atribuiu
valor. A atitude dessas pessoas precipitou nele uma atitude dentro de si que
ele automaticamente adota em relação a si mesmo. É isso o que o torna tão
impotente diante de gestos de superioridade de outras pessoas que, de alguma
maneira, deflagram nele esse automatismo. (Elias, 1994, p. 242).
REEQUILÍBRIOS
NA BALANÇA DE PODER
A
sensação de inferioridade, o medo e a vergonha podem diminuir ou até desaparecer
na medida em que um grupo marginalizado consegue criar nova imagem e ideal
coletivo. Para que isso ocorra, é preciso contrabalancear as assimetrias de
poder. A figuração estabelecidos x outsiders não é estática, o que torna
possível que novos arranjos promovam a ascensão de grupos excluídos e a
decadência dos dominantes.
Enquanto
as antigas normas e, de modo mais geral, as concepções de mundo internalizadas
forem consideradas verdadeiras, a tendência será de que a desigualdade permaneça.
A segregação racial nos Estados Unidos, entre os séculos XVII e XX, é uma demonstração
histórica de como grupos outsiders – nesse caso afroamericanos – podem reverter
o processo de estigmatização e exclusão social. A discriminação racial
norteamericana era politicamente institucionalizada; até 1967 ainda vigorava em
alguns
Estados
a lei de antimiscigenação, criada no século XVII, que impedia o casamento interracial.
As leis de Jim Crow, de 1876 a 1965, impediam que negros e brancos frequentassem
as mesmas escolas e determinavam que os locais públicos reservassem espaços
diferenciados para essas pessoas. Graças a lutas encarniçadas por direitos
civis, boa organização coletiva e ideias políticas que valorizavam a cultura
negra, essas leis vieram abaixo. Elias (2000) afirma que classificações raciais
ou étnicas são características de atos ideológicos de evitação. Funcionariam
como um modo de desviar a atenção para atributos secundários, escamoteando a
visão para questões mais importantes relacionadas à dinâmica de poder e
exclusão social de posições influentes.
Independentemente
– enfatiza Elias –, da cor da pele ou de qualquer outra característica física,
tal relação estaria ligada a mecanismos que permitem maior vantagem de poder e oportunidades,
capazes de criar limitações ao acesso desses mesmos recursos aos dominados.
Assim, a ideia de “preconceito racial” seria insuficiente para explicar o fenômeno
segregacionista estadunidense.
Do
mesmo modo, a explicação teológica das Testemunhas de Jeová para a desassociação
esconderia interesses e, sobretudo, a dinâmica de poder que opera sob tais
circunstâncias. Ao longo de sua história a Igreja passou por disputas políticas
importantes, entre elas brigas pelo controle político da organização que
resultariam no cisma de 1917; e o processo de mudança para o nome atual em
1923. Antes se chamavam Estudantes da Bíblia. Além disso, muitas de suas
previsões apocalípticas fracassaram, ocasionando a saída voluntária de vários
membros. A cada novo conflito interno, novas ondas de confusão se geravam entre
líderes e seus seguidores. Esses períodos são, naturalmente, os mais propícios
ao ceticismo e à dispersão religiosa.
Muitas
pessoas foram desassociadas por questionar a certeza e a autoridade do Corpo Governante
em profetizar. Pessoas desassociadas, que não mais aceitam a autoridade da
Igreja, estão se organizando ao redor do mundo em grupos de discussão
político-religiosa e de crítica à Organização3.
Frequentemente questionam aspectos fundamentais da doutrina, apontam irregularidades
administrativas e servem de apoio a outros descontentes. Esses grupos não
toleram o estigma que a sua antiga religião os imputa; procuram construir nova autoimagem
se apresentando como pessoas críticas que despertaram de um “sono dogmático”.
Sua capacidade de organização e crítica parece, em certo ponto, ameaçadora ao
poder da Igreja. A orientação religiosa é a de que os irmãos façam pouco, ou
nenhum uso, da rede de computadores mundial. A leitura de textos, não oficiais,
que discutam questões relacionadas à doutrina ou à critica religiosa, é veementemente
proibida. Consideram apóstatas as pessoas que leem ou escrevem tais textos, e é
outro grave motivo para desassociação.
A
organização política dos desassociados e a utilização de meios de comunicação
como a internet deram maior visibilidade à crítica contra as Testemunhas de
Jeová, impondo novos direcionamentos à política da Igreja. Muitas denúncias de pedofilia,
violência contra as mulheres, tortura psicológica, discriminação e intolerância
religiosa se tornaram públicas através da rede mundial de computadores. Os
dirigentes da Igreja sempre estiveram bastante empenhados em restringir o
acesso a fontes de informação diferenciadas. Fazem sempre advertência sobre as
consequências nocivas da televisão e da leitura de livros não canônicos. Além
disso, não recomendam que as pessoas façam cursos superiores e demonizam o
estudo da Filosofia. Essas imposições podem ser explicadas, com efeito, a
partir da tentativa de manter uma visão de mundo coesa, garantindo assim a
unidade e o controle social. É tarefa bastante complicada a manutenção dessas
significações nas sociedades contemporâneas, em que coexistem múltiplas formas
de atribuição de valores e sentido.
Para
Berger (1995), a linguagem é capaz de transcender a realidade cotidiana e
construir sistemas de representações simbólicas monumentais. A religião, a
ciência e a filosofia seriam as formas de representações simbólicas mais
importantes da humanidade. A linguagem não fabricaria apenas símbolos
abstraídos da experiência, mas, dialeticamente, seria o mecanismo que os
objetivizam na realidade. Berger (1983) acredita, então, que o estudo minucioso
dos sistemas de significação revelaria a visão assustadora de como esses
mecanismos oferecem explicações totalizantes do real – inclusive de sistemas
simbólicos alternativos. De tal maneira, a adoção de certo ponto de vista
condicionaria a percepção individual. É possível, porém, que as pessoas
alternem suas visões e é justamente isso que as Testemunhas de Jeová
procurariam evitar.
Em
níveis inferiores de sofisticação, haverá também vários meios empregados para
eliminar perguntas que pudessem ameaçar a fidelidade doindivíduo ao sistema,
meios que se pode ver em funcionamento nos malabarismos dialéticos até mesmos
de grupos relativamente pouco sofisticados como as Testemunhas de Jeová. (Berger,
1983, p. 63).
CONCLUSÃO
Como
podemos observar, a dominação das Testemunhas de Jeová está ligada à internalização
de valores morais e a uma cosmovisão religiosa específica. O desvio de regras
socialmente aceitas pelo grupo resultam, quase sempre, em sanções que podem levar
à desassociação – ao estigma e à exclusão social –, acompanhadas do sentimento de
culpa e inferioridade moral. Numa perspectiva sociológica figuracional, a sociodinâmica
desse fenômeno não pode ser explicada a partir de pressupostos de natureza
metafísica, ou seja, de seus fundamentos teológicos. Tampouco através de análises
psicológicas individuais que privilegiem conceitos como preconceito e antipatia.
A
teoria eliasiana do poder é, portanto, uma chave de leitura que permitiria esclarecermos
a sociogênese e a sociodinâmica do processo de exclusão. O poder é de natureza
relacional; depende de circunstâncias estruturais de interdependência para existir.
Por isso, uma relação estabelecidos x outsiders não é estática.
Variações podem ocorrer na medida que surjam novos ordenamentos no equilíbrio
de forças. Grupos dominados poderão ascender a posições privilegiadas se forem
capazes de aumentar sua capacidade de poder. Tal movimento será acompanhado de
uma tentativa de redefinição da autoimagem. As associações políticas dos
desassociados funcionariam, assim, como mecanismo de reequilíbrio na balança de
poder com a Igreja. Um estudo mais detalhado poderia fornecer conhecimentos
mais abrangentes a respeito dos efeitos práticos da organização de tais grupos.
As teorias de Elias sobre o controle das emoções, por outro lado, poderiam ser
bastante úteis para uma futura investigação que se detivesse no funcionamento
dos mecanismos de dominação e nos rituais de retorno dos desassociados à
religião.
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No Brasil existe
um grupo na Internet chamado Testemunhas de Jeová Livres que mantém um fórum de
discussões, além de comunidades no Orkut.