Blog TESTEMUNHAS DE JEOVÁ, de autoria de
Superdotado Álaze Gabriel.
Disponível em http://alazegabriel.blogspot.com.br/
Autoria:
Juan
Carlos Montano Pedroso - Cirurgião Plástico, Título de Especialista em
Cirurgia Plástica da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP), Membro
associado da SBCP, São Paulo, SP, Brasil;
Sandro
Salanitri - Mestre em Medicina pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa
Casa de São Paulo, Membro Titular da SBCP, Médico Voluntário da Santa Casa de
São Paulo, São Paulo, SP, Brasil;
Américo
Helene Júnior - Doutor em Medicina pela Faculdade de Ciências Médicas da
Santa Casa de São Paulo, Membro Titular da SBCP, Chefe do Serviço de Cirurgia
Plástica da Santa Casa de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.
RESUMO
INTRODUÇÃO:
As Testemunhas de Jeová são um grupo religioso que não aceita as transfusões de
sangue.
RELATO
DO CASO: Os autores descrevem o caso de uma criança, Testemunha de Jeová,
que apresentava alopecia cicatricial no couro cabeludo e defeito da calota
craniana, resultantes de politraumatismo. O tratamento foi iniciado com a
colocação de expansor no couro cabeludo e uso de eritropoetina e
sulfato-ferroso para aumento dos níveis de hemoglobina. A retirada do expansor
e a correção do defeito da calota craniana com placa de acrílico foram
realizadas com sucesso e sem o emprego de transfusões de sangue.
DESCRITORES:
Testemunhas de Jeová. Alopecia. Expansão de tecido. Transfusão de sangue.
Eritropoetina.
INTRODUÇÃO
Realizar
a correção cirúrgica de alopecia cicatricial no couro cabeludo e de defeito da
calota craniana em uma criança sem transfusão de sangue pode constituir um
desafio para os cirurgiões.
Embora
as transfusões de sangue sejam utilizadas há décadas, recentemente o adequado
papel da transfusão de sangue no manejo da anemia tem sido questionado1.
Os cirurgiões estão cônscios não somente dos riscos associados às transfusões
de sangue, mas também dos custos e suprimentos restritos das bolsas de sangue.
Também há pacientes que devido a vários motivos, inclusive religiosos, não
aceitam transfusões de sangue2. Tais fatores têm contribuído para a
popularização de estratégias terapêuticas alternativas às transfusões de
sangue, comumente denominadas de "gerenciamento e conservação do
sangue"1. Tais princípios não deveriam limitar-se apenas ao
tratamento das Testemunhas de Jeová, para as quais as transfusões de sangue não
são uma opção terapêutica, mas deveriam constituir numa parte integral do
dia-a-dia do cirurgião.
A
reconstrução de defeitos do couro cabeludo é necessária em casos de trauma
agudo, extirpação de tumores e melhora de cicatrizes inestéticas e alopecia. A
utilização de expansão tecidual deve ser considerada especialmente nas lesões
mais extensas, em que o uso de retalhos locais seja inadequado devido ao
tamanho do defeito ou tecido local traumatizado3.
Os
autores apresentam relato de caso de tratamento cirúrgico de alopecia
cicatricial no couro cabeludo, com expansão tecidual e correção de defeito da
calota craniana, em criança Testemunha de Jeová, com emprego de estratégias
alternativas às transfusões de sangue.
RELATO
DO CASO
B.L.A,
9 anos, sexo masculino, Testemunha de Jeová, vítima de politraumatismo aos 6
anos de idade por acidente automobilístico, com escalpelamento e fratura do
crânio na região orbitofrontal direita, tratados com sutura da dura-máter nas
bordas ósseas, desbridamento de tecidos desvitalizados e rotação de retalho
local de couro cabeludo. Tratamentos alternativos à transfusão de sangue foram
utilizados e o caso foi publicado na literatura4.
O
paciente apresentava como sequelas, três anos após o politraumatismo, extensa
alopecia cicatricial na região temporoparietal direita e frontal. A tomografia
de crânio demonstrava pequena área cortical-subcortical hipoatenuante na região
orbitofrontal direita de aspecto sequelar. Em decorrência da grande extensão da alopecia cicatricial, optou-se
pela expansão tecidual do couro cabeludo para sua correção. Estratégias
alternativas às transfusões de sangue foram utilizadas por se tratar de
paciente Testemunha de Jeová.
Com
o paciente sob anestesia geral, foi realizada infiltração de solução de
adrenalina 1:250.000, para reduzir o sangramento intraoperatório. Um expansor
formato de rim de 480 ml foi colocado no plano subgaleal através de uma incisão
temporal direita e parietal direita. O nível de hemoglobina no pré-operatório
era de 12,5 g/dl e, no primeiro dia pós-operatório, diminuiu para 12,4 g/dl.
O
paciente foi submetido à expansão tecidual do couro cabeludo, semanalmente, de
maneira convencional, atingindo-se um volume de 660 ml. A fim de aumentar os níveis de hemoglobina para a segunda cirurgia,
que apresentava maior potencial de sangramento, o paciente recebeu
eritropoetina alfa na dose de 10000 UI (300 UI/kg), três vezes por semana, por
via subcutânea, iniciando-se 4 semanas antes da data da cirurgia, totalizando 9
aplicações. A dosagem de ferritina sérica antes do início do tratamento com
eritropoetina era de 107,7 ng/ml, dentro dos valores de referência para sua
idade, demonstrando adequado estoque de ferro no organismo. O nível de
hemoglobina no início do tratamento com eritropoetina era de 12,4 g/dl.
Suplemento de ferro elementar por via oral, na dose diária de 5 mg/kg, e
suplemento polivitamínico foram prescritos conjuntamente. Sete dias após o
início do tratamento com eritropoetina e suplemento de ferro, já era observado
aumento no número de reticulócitos. Ao término do tratamento, o nível de
hemoglobina havia aumentado para 15,5 g/dl.
A
segunda cirurgia foi realizada com o paciente sob anestesia geral, iniciando-se
pela infiltração de solução de adrenalina 1:250.000. O expansor foi removido e
as áreas de alopecia cicatricial foram retiradas. A equipe de neurocirurgia
realizou o reparo do defeito orbitofrontal direito da calota craniana, com a
colocação de uma placa de acrílico. O retalho expandido de couro cabeludo foi avançado, permitindo a
completa cobertura do defeito. Um dia após a cirurgia, o nível de hemoglobina era de 12,1 g/dl. O
paciente recebeu alta hospitalar no segundo dia pós-operatório, com ótima
evolução.
DISCUSSÃO
"Gerenciamento
e Conservação do Sangue" tem sido definido como "o uso apropriado do
sangue e dos componentes do sangue, com o objetivo de minimizar seu uso"1.
A exposição dos pacientes às transfusões de sangue pode ser minimizada pelo uso
sistemático de múltiplas técnicas de conservação do sangue, que envolvem o uso
apropriado de medicamentos, equipamentos e técnicas cirúrgicas, de forma
isolada ou associada.
Várias
técnicas cirúrgicas e anestésicas foram desenvolvidas para reduzir as perdas
sanguíneas, tais como: abordagens que reduzem o sangramento (endoscopia e
laparoscopia); desenvolvimento de instrumentos cirúrgicos hemostáticos
(eletrocautério, coagulador com raio de argônio) e materiais biológicos, como a
cola de fibrina, que diminuem áreas de sangramento; infiltração de solução
vasoconstritora; uso de medicamentos que estimulam a produção de plaquetas
(IL-11 recombinante); drogas que reduzem a perda sanguínea intraoperatória,
como os concentrados de complexo protrombínico e antifibrinolíticos (ácido
tranexâmico); uso da desmopressina (reduz o sangramento em pacientes tratados
com antiinflamatórios não esteroides antes da cirurgia); drogas que auxiliam na
redução do sangramento agudo (Fator VIIa); anestesia com hipotensão controlada;
hemodiluição normovolêmica aguda; recuperação intraoperatória de células;
manutenção da normotermia (a hipotermia reduz a função plaquetária, aumentando
o sangramento)5,6.
No
caso relatado, a correção do defeito da calota frontal foi realizada com placa
de acrílico, pela equipe de neurocirurgia, embora a indicação preferencial para
esta cranioplastia seja o uso da tábua externa parietal retirada sem
craniotomia. A cranioplastia com acrílico na região frontal pode originar
osteomielite no longo prazo, pela proximidade com o seio frontal, quando este
se desenvolver completamente. Além disso, o crescimento da calota craniana da
criança pode provocar desestabilização da placa futuramente. A infiltração de
solução vasoconstritora no couro cabeludo, tanto na cirurgia de colocação do
expansor como na sua retirada, permitiu a diminuição do sangramento dos tecidos
moles.
O
conhecimento de que o organismo humano com anemia desenvolve mecanismos
compensatórios (aumento do débito cardíaco, deslocamento da curva de
dissociação da hemoglobina para a direita) que lhe permitem maior tolerância à
anemia também contribui para reduzir as transfusões de sangue. Estudos
demonstraram que hematócritos tão baixos como 20% foram bem tolerados por
crianças hemodinamicamente estáveis4. No entanto, o avanço mais
significativo para evitar as transfusões de sangue é reconhecidamente o uso da
eritropoetina.
A
eritropoetina é uma glicoproteína produzida pelos rins, que age diretamente nos
progenitores das hemácias na medula óssea, estimulando a proliferação,
diferenciação e maturação eritrocitária4. Existem diversos agentes
estimuladores da eritropoiese aprovados em testes clínicos, com diferentes
propriedades farmacocinéticas e farmacodinâmicas. Podendo ser administrada por
via subcutânea, a eritropoetina promove, em três dias, aumento do número de
reticulócitos, e o equivalente a uma bolsa de sangue é produzido em 7 dias, e 5
bolsas de sangue, em 28 dias. O estímulo da eritropoiese pela eritropoetina
independe da idade ou do gênero. O intervalo de tempo pré-operatório necessário
para o estímulo adequado da eritropoiese é de cerca de 4 semanas7.
A
eritropoetina tem sido usada com sucesso, evitando-se transfusões de sangue em
vários procedimentos cirúrgicos com diversas recomendações de dosagem, como 300
UI/kg, três vezes por semana, durante 3-4 semanas e de 200 a 600 UI/kg, uma vez
por semana, por quatro semanas7. Recomenda-se a verificação de um
adequado ferro de depósito no organismo antes do início do tratamento com
eritropoetina por meio da dosagem de ferritina sérica (ferritina acima de 100
ng/ml indica adequado ferro de depósito). Suplementação de ferro, folato e
vitaminas B6, B12 e C são recomendados durante a terapia com eritropoetina, a
fim de acelerar a resposta eritropoiética e evitar a depleção dos estoques de
ferro. Embora neste relato de caso a estimulação da eritropoiese tenha sido
realizada com eritropoetina e ferro oral, a literatura tem demonstrado a
superioridade do ferro endovenoso em associação com a eritropoetina (ferro
endovenoso 200 mg duas vezes por semana)8. Para a administração de
ferro endovenoso, recomenda-se a diluição de 100 mg de ferro para 100 ml de
solução salina isotônica e uma infusão lenta (1 ml por minuto).
Dentre
os possíveis efeitos colaterais da eritropoetina, a literatura cita sintomas
gripais autolimitados, hipertensão, reação anafilática, hipercalemia,
trombocitose e trombose; raramente relatados4. A eritropoetina é
contraindicada nos casos de hipersensibilidade à mesma, hipertensão arterial
maligna, gravidez e lactação. A eritropoetina não apresenta interação
medicamentosa clinicamente significativa e a segurança de seu uso em pacientes
submetidos a procedimentos cirúrgicos tem sido demonstrada pela distribuição
semelhante de efeitos adversos, inclusive eventos trombóticos, em pacientes
tratados com eritropoetina ou placebo, em mais de 1000 pacientes participantes
de ensaios clínicos7.
Várias
são as complicações associadas às transfusões de sangue e até mesmo seus
benefícios têm sido questionados. Uma revisão sistemática da literatura com
metanálise, avaliando a eficácia das transfusões de sangue em pacientes
críticos, foi recentemente publicada9. As revisões sistemáticas com
metanálise são o tipo de estudo de maior evidência científica10.
Esta revisão sistemática incluiu 45 estudos, compreendendo mais de 270 mil
pacientes que foram divididos em diferentes grupos: vítimas de trauma, cirurgia
geral, cirurgia cardíaca, entre outros. Dos 45 estudos avaliados, 42
demonstraram que os riscos das transfusões de sangue eram maiores que os
benefícios (aumento de infecção, aumento de mortalidade), dois foram neutros e
apenas um único estudo mostrou benefício num subgrupo específico de pacientes.
Os autores da revisão concluem que as transfusões de sangue estão associadas a
aumento da morbidade e mortalidade e que, portanto, as práticas atuais de
transfusão de sangue precisam ser reavaliadas9.
CONCLUSÃO
A
literatura tem demonstrado que procedimentos cirúrgicos podem ser realizados
sem transfusão de sangue de forma segura, com uma preparação pré-operatória
adequada. Diante da maior preocupação por parte dos cirurgiões em relação a
eficácia, riscos, custos e suprimentos restritos das bolsas de sangue, os
princípios de gerenciamento e conservação do sangue devem constituir numa parte
integral do dia-a-dia do cirurgião. Várias são as estratégias alternativas à
transfusão de sangue que podem ser empregadas em todos os pacientes, inclusive
no tratamento das Testemunhas de Jeová, sendo uma das mais importantes a
eritropoetina humana recombinante, utilizada neste relato de caso.
AGRADECIMENTOS
Os
autores agradecem ao Dr. Fernando José Cabral, membro da Society for the
Advancement of Blood Management (SABM), pela ampla revisão bibliográfica
exigida pelo presente trabalho.
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